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Exército põe 25 mil no combate à pandemia, mas não se livra da luta política

Grupo de militares tenta se afastar da polêmica entre governadores e presidente; no entanto, contaminação dos quartéis e dos civis torna tarefa difícil

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Foto do author Marcelo Godoy
Por Marcelo Godoy
Atualização:

Caro leitor,

Vinte e cinco mil militares do Exército estão engajados no combate à covid-19. Pouco mais de duas semanas depois da montagem dos centros de coordenação operacionais, a Força deslocou seus homens para a desinfecção de locais públicos, o treinamento das defesas civis estaduais e a produção de máscaras e de medicamentos para a proteção de médicos e enfermeiros, além da construção de hospitais de campanha – só na área do Comando Militar do Sudeste (CMSE) serão 20.

Presidente Jair Bolsonaro, que menospreza o coronavírus Foto: GABRIELA BILÓ/ESTADÃO

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“Em que pese toda a discussão política entre governadores, o presidente e os prefeitos, a instituição tem consciência de que antes de tudo esse é um drama humano. Trata-se de uma questão humanitária que atinge o Brasil inteiro”, afirmou um general ao explicar o desdobramento de tropas em todos os comandos de área do Exército para combater a covid-19.“O comando do Exército quer mostrar que faz seu trabalho sem olhar para os conflitos políticos.” Militares afirmam que pedidos de prefeitos e  governadores estão sendo atendidos ainda que haja em Brasília quem trate a covid-19 pela alcunha de “gripezinha”.

Os atos e o discursos do Exército querem, pela enésima vez, mostrar à sociedade que a instituição cumpre seu dever, evitando se envolver em disputas políticas.  “Mas é claro que há identificação com Bolsonaro. E essa identificação está no anticomunismo, pois sentimos que esses regimes não levaram nem ao desenvolvimento dos países nem à igualdade prometida”, afirmou um general. Além da identificação ideológica, o que determinou o apoio ao candidato foi o discurso antipetista, ainda mais depois dos escândalos de corrupção. “Conheço muito oficial que nunca havia votado nele apesar de Bolsonaro buscar a identificação com a classe militar.” 

Ou seja, os generais admitem o apoio e a proximidade de visão com o atual governo, mas dizem que isso não contamina suas decisões nos quartéis, apesar da ida de dois integrantes do Alto Comando para o ministério de Bolsonaro – os generais Walter Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos. O Exército, porém, terá sucesso ao tentar convencer as demais forças políticas e a sociedade em geral ao tentar dissociar sua imagem daquela do capitão Bolsonaro, o homem que passeia em meio ao povo apesar da necessidade de isolamento para deter a propagação do coronavírus?

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“O militar que vai para o governo vai por sua conta e risco”, diz o general.  Ou seja, quem deve prestar contas disso é quem está no governo. No entendimento do general, o bolsonarismo pode ter invadido grupos de WhatsApp e redes sociais de oficiais – inclusive os da ativa –, mas não existiria liderança militar, além dos generais da ativa, capaz de pôr a tropa em forma. "Comando de tropa só tem quem está na ativa. Santos Cruz não lidera ninguém. Santa Rosa não lidera ninguém. Não botam ninguém em forma. Santos Cruz não põe dez em forma e Santa Rosa não põe cinco", afirmou o general, referindo-se a dois generais que foram demitidos por Bolsonaro e hoje são críticos do governo.

“Quem manda no Exército é o Alto Comando. É quem tem a tropa na mão”, disse. Seria bom que civis e seus colegas – ele adverte –abrissem a obra O Soldado e o Estado, teoria política das relações entre civis e militares, de Samuel Huntington. Há uma geração inteira que abandonou os estudos sobre os militares e a República no País. Preconceito, tabu e desinteresse se somaram para criar mal-entendidos e ilusões entre militares e civis.

Se uma parte dos civis deve abandonar preconceitos e se interessar pela Defesa Nacional, uma parte dos militares deve deixar o bolsonarismo. Seria bom ouvir os conselhos do coronel Y. Em 1.º de dezembro de 1933, ele escreveu aos colegas, após as manobras das escolas das Armas: “Provavelmente, o chefe do governo provisório, quando procurava divisar nos mattos de Gericinó os executantes, sem poder vislumbrá-los, deve ter se lembrado que os officiaes que transbordam de ‘ideologia’ que se proclamam ‘authenticos’ e que julgam o Exército só comportar os diferentes ‘modelos’ de revolucionários (1922, 1924, 1926, 29130), não podiam achar-se naquelle ambiente profissional. Aonde elles andarão?”

O coronel Y era o futuro marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Castelo não via entre os militares profissionais de então os tenentes interventores sedentos de exercer o poder revolucionário. Hoje, enquanto os bolsonaristas fazem barulho nas redes sociais e alguns pedem até a volta da monarquia, um grupo silencioso e profissional de militares volta a pensar como Castelo Branco. É preciso preservar o profissionalismo e a distância do partidarismo nas Forças Armadas como única forma de escapar à sua débâcle profissional. Há generais cansados de serem usados como contraponto a Bolsonaro. Querem seguir com sua faina nos quartéis. Serão promovidos? É isso que o bolsonarismo espera deles? Qual o futuro do Exército profissional?  

Esses militares se queixam do mundo civil e dos que desconhecem seus deveres e valores. Têm razão. Há muita gente que procura neles uma forma de criar oposições inexistentes entre governo e o Exército. Mas eles têm pouco interesse ainda em constatar as contaminações partidárias que se verificam entre seus colegas. E estão quase sempre prontos a repetir a versão de que o governo não lhes pertence, como se a presença maciça de militares na atual administração não fosse problema ou tema de seu interesse. O diabo é que o real, apesar da repulsa humana ao contingente, sempre aparece.

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No primeiro capítulo de As Crises da República, Hannah Arendt lembra da aversão da razão à contingência. E cita Hegel: “A contemplação filosófica não tem outro intento que o de eliminar o incidental”. Ela segue afirmando que grande parte da teoria política de então tinha esse desejo por objetivo. “A falha de tal raciocínio começa em querer reduzir as escolhas a dilemas mutuamente exclusivos.” Arendt alerta que a realidade nunca se apresenta como algo tão simples, como premissas para conclusões lógicas. “O tipo de raciocínio que apresenta A e C como indesejáveis e assim se decide por B dificilmente serve a algum outro propósito que não o de desviar o juízo da infinidade de possibilidades reais.”

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Arendt faz uma crítica ácida aos burocratas do governo americano de então: “O que os resolvedores de problemas têm a ver com os verdadeiros mentirosos é o desempenho em se livrarem dos fatos. Eles confiam de que isso seja possível. A verdade é que isso nunca pode ser feito, nem pela teoria, nem pela manipulação da opinião. Como se um fato pudesse ser removido do mundo, simplesmente, porque bastante gente acredita na sua não existência”. Arendt se referia às revelações contidas nos Pentagon Papers, e as mentiras contadas pelos governos americanos a respeito da guerra do Vietnã.

No Brasil, nenhum documento institucional sobre a guerra à covid-19 veio à luz. Nem seria preciso. Ao pôr 25 mil homens nas ruas para lutar contra a epidemia no País, o Exército mostra o que pensa sobre a ameaça. Sua mobilização se distancia do oportunismo político de alguns ou do fanatismo bolsonarista, que ontem distribuía nas redes sociais uma imagem de Cristo ao lado do presidente na qual dizia que seu Mito – e não a ciência –  ia salvar o País.

Por mais que o desejo de uma parte dos oficiais seja de se distanciar da guerra política, suas ações terão sempre um significado. Ainda mais quando o presidente chama a covid-19 de “gripezinha” e se comporta como se ela de fato fosse isso. É que simplesmente não há como se livrar dos fatos. Ainda que Bolsonaro ou seus opositores não enxerguem quem são ou o que pensam os militares que se exercitam nos campos de treinamento de Gericinó.

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