É falso que mortalidade por covid na Suíça tenha aumentado após restrição a hidroxicloroquina

Alegação foi feita por site francês com base em post de redes sociais, mas dados oficiais mostram o contrário

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Por Pedro Prata
Atualização:

É falso que a mortalidade da covid-19 na Suíça tenha aumentado quase quatro vezes após o país europeu ter "banido" a hidroxicloroquina do tratamento contra o novo coronavírus. A alegação enganosa foi citada durante uma entrevista de um canal no YouTube, que usa como fonte um artigo de um site francês que se baseou em posts de redes sociais e não se sustenta quando comparado aos dados oficiais.

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O vídeo foi enviado por leitores do Estadão Verifica ao número 11 97683-7490.

Quem deu voz a essa alegação foi Naomi Yamaguchi, irmã da médica Nise Yamaguchi, defensora da cloroquina para o tratamento da covid-19. Ela diz que o site France Soir divulgou que a "taxa de mortalidade" na Suíça foi de 3% para 11,5%, em um período de duas semanas após o país europeu ter "banido" a hidroxicloroquina do tratamento da covid-19. O site ainda teria dito que o "banimento" do medicamento ocorreu por causa da publicação de um estudo que teria relacionado o uso do remédio a maior mortalidade e ocorrência de arritmias cardíacas, em 27 de maio de 2020. A pesquisa acabou retratada duas semanas depois (ver mais sobre o estudo abaixo).

Cartolinas representando os espectadores em um estádio de Zurique. Foto: Fabrice Coffrini/AFP

O Escritório Federal de Saúde Pública da Suíça negou que o texto do France Soir seja verdadeiro e disse ao Estadão Verifica por meio de nota que solicitou ao site que corrigisse algumas imprecisões, mas que isso não foi feito. "De acordo com os dados oficiais, não vemos um aumento no número de mortes na Suíça no período citado", informou o órgão. "De fato, ocorreu o oposto: registramos apenas 4 mortes nas duas primeiras semanas de junho, contra 22 mortes nas duas semanas anteriores. Portanto, não podemos demonstrar a eficácia (nem a ineficácia) da hidroxicloroquina com base nos dados utilizados pelo site."

É preciso dizer que Naomi confunde a taxa de mortalidade com a taxa de letalidade. A taxa de mortalidade mostra o número de pessoas de um país que morreram por uma doença e é calculada em óbitos a cada grupo de 100 mil habitantes, não em porcentagem. Na Suíça, este índice era, nesta sexta-feira, 14, de 117,75 mortes por 100 mil habitantes.Já a taxa de letalidade é a porcentagem de pessoas infectadas que vem a óbito e serve para indicar a gravidade da doença. O Estadão Verifica conferiu a evolução deste índice entre 15 de maio e 15 de junho de 2020, período que compreende a publicação e despublicação do estudo citado. As fontes para a consulta foram o site do Escritório Federal de Saúde Pública da Suíça e o site da Universidade Johns Hopkins, referência no acompanhamento da pandemia no mundo.

Os dois bancos de dados possuem números diferentes, mas nenhum dos dois aponta que a taxa de letalidade suíça atingiu as marcas sugeridas por Naomi nem apresentou o aumento citado. Segundo dados do Escritório Federal de Saúde Pública da Suíça, a taxa de letalidade variou entre 5,54% e 5,58% no período. Utilizando-se os dados disponibilizados pela universidade Johns Hopkins, o índice variou de 6,15% a 6,24%.

Olhando-se os gráficos do órgão de saúde suíço, é possível ver que o país europeu chegou a ter uma média móvel de 55 mortes por dia no começo de abril de 2020. Esse número ficou em queda constante até atingir 0 mortes no último dia de maio. Esta média móvel se manteve estável e abaixo de 1 até o final de agosto.

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Dados oficiais do governo suíço mostram que novos óbitos por covid-19 se mantiveram estáveis em níveis baixos de junho a setembro de 2020. Foto: FOPH/Reprodução

Ou seja, no período citado por Naomi, a Suíça registrava zero morte por dia e se manteve em níveis baixos posteriormente. A mesma tendência é observada nos dados da universidade Johns Hopkins.

Dados da universidade Johns Hopkins mostra que novos óbitos por covid-19 se mantiveram estáveis em níveis baixos de junho a setembro de 2020. Foto: FOPH/Reprodução

Sobre a diferença entre os números suíços e os da Universidade Johns Hopkins, o órgão de saúde federal disse que contabiliza os casos de morte confirmadas em laboratório registrados pelas 26 regiões administrativas do país. Tentamos contato com a universidade norte-americana, mas não obtivemos resposta até a publicação desta checagem.

O texto original no France Soir

O France Soir foi um jornal francês de destaque nos anos 1950, mas perdeu tamanho e hoje existe apenas em forma de site. Com a pandemia, sua versão digital ganhou destaque ao dar voz a conteúdos negacionistas e anti-vacina. Em entrevista ao jornal francês Le Monde, o diretor do site se disse satisfeito por "publicar textos que vão contra o pensamento generalista".

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Em 13 de julho, o site publicou um texto com o título "Covid-19: a hidroxicloroquina funciona, uma prova sólida?" Ele cita um dado postado em redes sociais que faz uma comparação entre o número de óbitos e o número de casos recuperados. Este índice, chamado de "taxa de letalidade sobre novos casos recuperados", foi cunhado pelo próprio internauta e não é utilizado por nenhum órgão de saúde pública. Os índices comumente utilizados são a taxa de letalidade e de mortalidade.

Segundo este usuário de redes sociais, este índice seria de cerca de 3% quando a Suíça permitia o uso de hidroxicloroquina e teria subido para mais de 10% no período de "banimento" do medicamento. O internauta afirma usar os dados da Universidade Johns Hopkins, que não mede o índice.

Mulher acende velas simbolizando as vítimas do surto de coronavírus (COVID-19) durante uma vigília a luz de velas na Bundesplatz, em Berna, na Suíça. Foto Arnd Wiegmann / Reuters Foto:

Hidroxicloroquina é ineficaz contra a covid-19

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A cloroquina foi desenvolvida na década de 1930 pela empresa alemã Bayer e recebeu o nome comercial Resochin. Ela tem uso regulamentado para tratar pacientes com malária, lúpus e artrite reumatoide. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Food and Drugs Administration (FDA), dos Estados Unidos, não recomendam seu uso contra a covid-19 pela falta de evidências científicas de sua eficácia.

A utilização da hidroxicloroquina e da cloroquina no tratamento de pacientes com covid-19 foi inicialmente endossada por médicos do sul da França. O estudo que justificava o tratamento, no entanto, acabou amplamente contestado. Uma revisão feita por outros médicos apontou dez erros metodológicos "grosseiros" que fazem com que o estudo "não permita tirar conclusão alguma". A revisão também chama o estudo de "irresponsável" por endossar o tratamento, tendo vista os potenciais efeitos colaterais da hidroxicloroquina e a alta na procura do remédio.

De lá para cá, o medicamento foi colocado à prova em diversos estudos e os mais robustos, que seguiram o padrão randomizado duplo-cego, padrão ouro de pesquisas científicas, provaram a sua ineficácia contra a covid-19. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou "fortemente" que a hidroxicloroquina não seja utilizada como prevenção contra o novo coronavírus e deixe de ser prioridade em pesquisas científicas. A decisão foi tomada após seis estudos com 6 mil pacientes mostrarem que a droga não teve efeito significativo na redução de casos e "provavelmente" aumenta o risco de efeitos adversos.

Imagem de uma escultura, representando um homem usando máscara de proteção contra o covid-19, em Sainte-Croix, na Suíça. Foto: Fabrice Coffrini / AFP Foto:

Estudo na revista 'Lancet'

O texto do site francês afirma que a "proibição ao uso da hidroxicloroquina" teria acontecido em decorrência da publicação de um estudo na revista científica Lancet que foi posteriormente retratado. O estudo em questão, publicado em 22 de maio, foi feito de modo observacional com os dados de 96 mil pessoas. Isto quer dizer que os quatro autores do estudo analisaram os dados clínicos desse montante de pessoas que já tiveram covid-19.

A análise mostrava que o uso de hidroxicloroquina estaria ligado ao aumento no risco de morte e de arritmia cardíaca. A base de dados utilizada pertencia a uma empresa americana chamada Surgisphere Corporation, cujo fundador da empresa também assinou o estudo.

No entanto, surgiram questionamentos quanto à veracidade dos dados e foram apontadas algumas discrepâncias. Dessa forma, os autores lançaram uma revisão independente do estudo. Como a Surgisphere Corporation se negou a entregar os dados completos com o argumento de que poderia violar acordos de confidencialidade, a revisão ficou comprometida. Três autores solicitaram a retirada do estudo em 4 de junho.

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O resultado do estudo levou a OMS a suspender os testes clínicos com a hidroxicloroquina. No entanto, após a retratação, os mesmos foram retomados normalmente.

Nas redes

O texto do France Soir ganhou destaque na voz de Naomi Yamaguchi durante entrevista ao canal no YouTube de Fernando Beteti em 20 de julho de 2020, mas voltou a viralizar este ano. Até esta sexta-feira, 14, o vídeo acumulava 65.809 visualizações e havia sido compartilhado ao menos 1,4 mil vezes no Facebook.

Não é a primeira vez que o Estadão Verifica desmente alegações feitas por entrevistados deste canal. Já desmentimos que um texto de um vencedor do prêmio Nobel comprovasse a eficácia da ivermectina contra covid-19.

Também demonstramos ser insustentável a alegação de um deputado do Rio Grande do Norte de que novas cepas do coronavírus atacariam o fígado de forma mais acentuada. O político fez a alegação enganosa durante uma entrevista ao mesmo canal no YouTube e defendeu o uso de medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento da covid-19.

O Estadão Verifica não conseguiu contato com Naomi Yamaguchi. O posicionamento dela poderá ser acrescentado caso ela entre em contato conosco por meio do e-mail estadaoverifica@estadao.com.

Esta verificação foi feita com base em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis em 14 de maio de 2021.

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