É falso que senadores da CPI da Covid acumulem mais de 2,4 mil processos na Justiça

Lista que circula nas redes com número fora da realidade foi criada a partir de buscas imprecisas em um site jurídico; resultados incluem pessoas sem qualquer relação com os 11 parlamentares

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Por Samuel Lima
Atualização:

Circula nas redes sociais uma suposta lista de processos envolvendo os 11 integrantes da CPI da Covid no Senado. A peça de desinformação alega que os senadores teriam juntos 2.405 pendências com a Justiça, mas não apresenta nenhuma fonte. O Estadão Verifica descobriu que os números foram coletados através de uma busca superficial em um site jurídico, que retorna uma série de processos sem qualquer envolvimento dos políticos.

Post desinforma sobre processos de senadores com números fora da realidade. Foto: Reprodução / Arte: Estadão

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A reportagem questionou por mensagem o perfil bolsonarista @oiluiz, que compartilhou originalmente o conteúdo viral, com mais de 6 mil compartilhamentos no Twitter e no Facebook. Sem obter retorno, passou a pesquisar trechos do conteúdo na internet (nome do senador, número e a palavra "processos") e chegou ao método duvidoso de busca.

As informações constam em páginas da plataforma JusBrasil, sempre no topo da lista de resultados e batendo com os valores mencionados (veja três exemplos abaixo). Esse site faz uma coleta automatizada de dados públicos referentes a processos e publicações em diários oficiais e os disponibiliza na internet para consulta mais prática.

O problema é a imprecisão dessa pesquisa genérica que deu origem ao boato. Para sugerir essa quantidade elevada de processos, evidências apontam que o autor do tuíte procurou pelo nome encurtado dos senadores, aqueles pelos quais são conhecidos na vida pública. Assim, acabou somando referências a homônimos, pessoas que têm o mesmo nome dos políticos, ou ao menos parte dele.

Alguns dos desconhecidos são advogados, inclusive, e não partes daquelas ações judiciais. Os profissionais aparecem associados a uma série de processos em que atuam, inflando artificialmente os dados.

A busca também não é capaz de determinar se o indivíduo é autor ou réu no processo, por exemplo. Nem é suficiente para entender do que se trata o material, que está inserido em diferentes áreas do Direito (cível, trabalhista, criminal, entre outras).

A postagem viral ignora todos esses aspectos e investe em uma narrativa enganosa de que todos os políticos seriam corruptos pela suposta alta quantidade de processos. A imagem que acompanha a lista mostra os "Irmãos Metralha", uma quadrilha de ladrões atrapalhados criada pela Disney na década de 1950.

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Pesquisa no Google traz indícios de que números da lista foram tirados de uma busca duvidosa no site jurídico JusBrasil. Foto: Reprodução

No caso de Marcos Rogério (DEM-RO), os supostos 1.492 processos alardeados na peça aparecem associados no JusBrasil a um nome que nem é dele: "Marcos Rogerio Oliveira", sendo que o político se chama Marcos Rogério da Silva Brito. Os termos pesquisados abarcam processos de um advogado paulista, o que explica as mais de 800 ações tramitando no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Ao procurar pelo nome completo do senador, encontramos um número muito menor: 18 (que podem incluir processos em que ele não é réu e homônimos).

Situação parecida ocorre com Humberto Costa (PT-PE), que supostamente responderia a 742 processos na Justiça, segundo o boato. Ao procurar essas informações no Google, a reportagem chegou a outra página do JusBrasil em que a quantidade é mais uma vez influenciada por um advogado de São Paulo, além de um desembargador de Pernambuco, ambos chamados de "Humberto Costa". O senador Humberto Sérgio Costa Lima é médico e jornalista. A busca pelo nome completo do parlamentar retorna 52 resultados.

Outro número que se destaca na lista é o de 306 processos relacionados a Eduardo Braga (MDB-AM), mas essa informação novamente não se sustenta com uma análise mais atenta. A maioria desses processos relacionados ao nome "Eduardo Braga" no JusBrasil tramita em tribunais de São Paulo e do Rio Grande do Sul, enquanto o senador Carlos Eduardo de Sousa Braga é do Amazonas. São apenas quatro processos listados com esse nome completo.

JusBrasil alerta sobre pesquisas superficiais no site

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Procurada pela reportagem, a JusBrasil alertou sobre os problemas de se promover esse tipo de pesquisa apressada no site. "É recomendável que tenha cuidado ao realizar análises superficiais a partir de dados isolados e fora de contexto", adverte a empresa.

"Quando os resultados são dispostos em nosso site, nem sempre há distinção entre homônimos, de forma que o mesmo nome (por ex. João da Silva) pode ter a ele atribuído diversos processos e não se tratar necessariamente da mesma pessoa." 

A plataforma afirma ainda que não distingue se o nome associado a um processo figura como réu ou autor da ação. "Em outras palavras, apenas pela contagem inicial, não é possível afirmar que determinado nome figura como réu em todas as ações associadas a seu nome", destaca.

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Dessa forma, esse tipo de pesquisa poderia servir, no máximo, como ponto de partida para uma análise mais aprofundada, com o cuidado de se utilizar o nome completo e de separar aqueles nos quais a pessoa figura como réu na Justiça. Da forma como circula nas redes, contém erros e não tem validade alguma.

Investigações criminais contra os senadores

Não é uma tarefa simples apurar a quantidade de processos envolvendo cada senador da República, pois os dados precisam ser checados em diversas instâncias da Justiça. E mesmo com essa apuração extensa, alguns resultados podem ficar de fora, pois há casos de órgãos que não facilitam a busca em suas páginas na internet e outros em que os processos correm em sigilo.

O site Congresso em Foco realiza, todos os anos, um levantamento sobre o assunto, considerando apenas as investigações criminais. O mais recente, publicado em 18 de maio de 2020, revelou que um em cada três senadores é alvo desse tipo de investigação na Justiça -- 28 entre 81 parlamentares. A maior parte das apurações, no entanto, ainda estava em estágio de inquérito, ou seja, investigações preliminares que podem resultar em processos ou ser arquivadas sem apresentação de denúncia.

Na época em que o levantamento foi publicado, cinco integrantes da CPI da Covid do Senado apareciam entre os investigados: Renan Calheiros (MDB-AL), com nove inquéritos no STF; Ciro Nogueira (PP-PI), com cinco inquéritos; Eduardo Braga (MDB-AM), com um inquérito e uma ação cautelar; Humberto Costa (PT-PE), com um inquérito; e Omar Aziz (PSD-AM), com uma investigação na Justiça do Amazonas.

O Estadão Verifica consultou o histórico dos 11 políticos novamente no portal do STF. Renan Calheiros (MDB-AL), indicado para a relatoria da CPI no Senado, é alvo de ao menos oito inquéritos na Corte. Ele já se tornou réu em um deles, pelo fato de o Supremo ter acolhido denúncia da Procuradoria-Geral da República em dezembro de 2019, mas o procedimento ainda se arrasta com recursos. A denúncia é pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no âmbito da Operação Lava Jato. 

O número real de processos contra o senador pode chegar a 12, considerando que quatro inquéritos identificados pelo Congresso em Foco no ano passado agora aparecem como sigilosos ou em segredo de Justiça. Opositor declarado do presidente Jair Bolsonaro, ele enfrenta críticas de adversários governistas, que entendem que o alagoano é suspeito para assumir o posto na comissão porque é pai do governador de Alagoas, Renan Filho (MDB). 

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Ciro Nogueira (PP-PI) permanece listado como alvo de cinco inquéritos no portal do STF, os mesmos apontados pelo Congresso em Foco em 2020. As investigações apuram suspeitas de corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha.

Eduardo Braga (MDB-AM) aparece como réu na mesma ação cautelar, que na realidade está relacionada a um pedido de prisão temporária feito pela Polícia Federal a partir do inquérito citado anteriormente, que agora também tramita sob sigilo no STF. Um documento do processo detalha que o senador é investigado sob suspeita de ter recebido R$ 6 milhões da JBS em um esquema de compra de apoio político na eleição da ex-presidente Dilma Rousseff.

Notícias recentes da CNN Brasil e do jornal Folha de S. Paulo permitem afirmar ainda que o senador Omar Aziz (PSD-AM) continua sendo investigado pela Justiça do Amazonas. O processo apura suspeita de desvios na área da Saúde enquanto o parlamentar era governador no Estado. O caso aparece fechado no STF porque a Corte decidiu, em 2018, que a competência para a apuração e o julgamento era da primeira instância. Ele deve ser escolhido o presidente da CPI da Covid, conforme acordo fechado por senadores independentes e oposição na semana passada. 

Os demais senadores -- Eduardo Girão (PODE-CE), Jorginho Mello (PL-SC), Marcos Rogério (DEM-RO), Otto Alencar (PSD-BA), Randolfe Rodrigues (REDE-AP) e Tasso Jereissati (PSDB-CE) -- não aparecem com investigações abertas no Supremo. Humberto Costa (PT-PE), que antes era alvo de investigação no levantamento do Congresso em Foco, teve o inquérito arquivado pela Corte em fevereiro deste ano. O petista era investigado sob suspeita de ter recebido R$ 1 milhão da Odebrecht.

Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.

Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook  é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas:  apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.

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