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Quem paga a conta do silêncio de Bolsonaro sobre os '80 tiros' são os militares e o Exército

Disparos que resultaram na morte do músico Evaldo Rosa colocam em xeque participação das Forças Armadas em ações ligadas à Segurança Pública; investigações do CML avançam e mostram 'cenário do crime'

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Foto do author Marcelo Godoy
Por Marcelo Godoy
Atualização:

Caro leitor,

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os tiros disparados contra o carro do músico Evaldo dos Santos Rosa colocaram em xeque, para muitos, a participação de militares das Forças Armadas em ações ligadas à Segurança Pública nas áreas urbanas do País. O silêncio do governo federal após os disparos só foi rompido na quarta-feira, dia 10, com as declarações do ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, que chamou o caso de “lamentável e triste incidente”. O ministro revelou não achar “normal” os "80 disparos", assegurou que o Exército ia apurar tudo e “cortar na própria carne.” No fim, completou: “O presidente falou: apure o que tem que ser apurado”. Já fazia três dias que o filho de Evaldo perguntava pelo pai e dois que os militares envolvidos estavam no xilindró quando o ministrou finalmente falou.

O Exército que estivera a frente da intervenção federal no Rio e mantivera suas tropas atuando em operações de garantia da lei e ordem no Estado em 2017 e 2018 se viu diante de um episódio classificado por sua cúpula como “péssimo, muito negativo”. O que os generais sabem sobre os tiros que mataram o músico? Horas depois dos disparos, o Comando Militar do Leste (CML) soltou uma nota em que afirmava “com base em informações iniciais transmitidas pela patrulha”, que a “tropa teria reagido a uma agressão oriunda de criminosos a bordo de um veículo”.

Amigo de Evaldo dos Santos Rosa protesta diante de um veículo do Exército; músico foi morto a tiros após o carro em que dirigia ter sido alvejado por 80 disparos efetuados por militares Foto: Silvia Izquierdo/AP

O que levou a esse erro de avaliação do CML? O chefe da patrulha faltou com a verdade, tentou encobrir o crime adicionando-lhe a indignidade da mentira e, assim, teria sido desleal com seus comandantes? “Não há provas disso”, disse um general. A patrulha não tentou fraudar o local do crime, adicionando arma ou drogas nas mãos da vítima para encobrir o delito, como já aconteceu no caso do dentista Flavio Santana em 2004, em São Paulo, quando os PMs que o mataram, além de confundirem o dentista negro com um assaltante, ainda tentaram mudar a cena do crime, colocando uma arma na mão da vítima. A farsa foi descoberta e todos foram presos.

No caso do músico morto em Guadalupe, no Rio, quando ia com a família para um chá de bebê, os militares envolvidos foram presos por ordem do comando quando se percebeu que seus depoimentos tinham inconsistências. Não obedeceram as “regras de engajamento”, o manual de operações com as normas sobre quando se pode e se deve atirar em operações de segurança urbana. Os generais afirmam que o caso precisa ser analisado em seu contexto: “Aquilo não ocorreu em Marte. A área é uma região de confrontos. A percepção da patrulha é que estava sob ameaça. Pode ser que essa ameaça não estivesse no carro, mas nas imediações. Houve um erro de avaliação. Ninguém sai para a rua para executar um inocente. Depois, houve uma nota precipitada que teve de ser refeita.”

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De fato. É possível pensar que os sete soldados, o sargento e o tenente presos pelo assassinato do músico não tinham a intenção de fuzilar um pai de família ao lado do filho de cinco anos e da mulher. O que, então, saiu errado? A perícia técnica deve apontar que o número de disparos feitos pelos militares foi, segundo um oficial, "inferior a 40" e não os 80 divulgados pela Polícia Civil. Há perfurações não só na traseira do veículo do músico, mas também na lateral e foram constatadas marcas de disparos feitos contra a tropa. "Evidentemente, eles não partiram do veículo do músico, mas de bandidos que estavam perto do local." A família - dizem os generais - teria sido pega em fogo cruzado. 

E para além do local dos fatos, o que pode ter saído errado?  Especialistas apontam para uma escalada no uso da força pelas órgãos de segurança no País. E para uma banalização do engajamento das Forças Armadas em uma tarefa que não lhes cabe: a Segurança Pública. No fim dos anos 1970, o marechal Cordeiro de Farias dizia se preocupar “com uma distorção da instituição militar”. Para ele, o Exército estava se tornando polícia, invadindo casas e prendendo pessoas. Ele, que comandara a Artilharia Divisionária da Força Expedicionária Brasileira (FEB), na Itália, durante a 2ª Guerra Mundial, criticava a guerra que os jovens haviam arrumado: o combate à subversão. Segundo ele, isso “degradava profundamente a instituição”. A conta ficou para o Exército.

Militares atiraram contra veículo nas imediações do Piscinão de Deodoro, em Guadalupe, no Rio Janeiro Foto: Fabio Teixeira/AP

Duas décadas depois, outro artilheiro – o coronel Romeu Antônio Ferreira – preparou o terreno para o uso do Exército em operações de Segurança Pública, aplicando na Operação Rio, em 1994, os princípios das operações de informações e da produção de conhecimento no combate ao crime organizado. A inteligência militar deixava a área política e conhecia um novo inimigo: os bandidos dos morros e favelas. Iniciava-se uma nova fase, com ocupações de terrenos em ambientes urbanos para deter traficantes de drogas.

Em 25 anos, o uso das Forças Armadas nessas operações cresceu 3 vezes. Antes da intervenção federal em 2018, Exército e Marinha haviam registrado 19 bandidos mortos em cinco anos de operações na cidade (2013 a 2017) – havia ainda 81 civis feridos e 2 militares mortos e 84 feridos. Nas palavras do então ministro da Segurança, Raul Jungmann, “pôr as Forças Armadas nas ruas era dar férias aos bandidos”. Até revista em cadeia o Exército passou a fazer. Novamente, a instituição voltou a ficar parecida com a polícia, como lamentava Cordeira de Farias.

Dias antes da morte do músico em Guadalupe, na madrugada de sexta-feira, dia 5, outra patrulha do Exército havia matado o jovem Christian Felipe Santana de Almeida Alves, de 19 anos. Os tiros foram disparados pelas costas, durante uma blitz na Estrada Pedro de Alcântara, em Realengo, na zona oeste. “Romper barreira não autoriza a resposta com tiros, não configura a legítima defesa. Quem estava supervisionando isso? As regras de engajamento foram cumpridas?”, questiona o coronel da PM paulista José Vicente da Silva, ex-secretário nacional de Segurança (governo FHC).

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Após os tiros disparados no carro em que estavam o músico Evaldo dos Santos Rosa e sua família, o Exército, que não queria e não podia assumir o ônus de garantir a Segurança Pública, viu-se diante da necessidade de, a exemplo dos comandos de tantas polícias, soltar uma nota afirmando não compactuar “com os excessos ou abusos que venham a ser cometidos quando do exercício de suas atividades”. Os generais reiteraram o “compromisso com o respeito à dignidade humana”, lamentaram “o triste incidente” que vitimou o senhor Evaldo” e expressaram “suas condolências aos familiares e amigos”.

O presidente da República, Jair Bolsonaro, durante evento oficial em Brasília Foto: Evaristo Sá/AFP

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Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro, um político que sempre disse que atiraria primeiro e perguntaria depois em quem invadisse sua propriedade, mantinha-se em silêncio. No dia 4 de abril, horas depois de policiais da Rota terem matado em Guararema (SP) 11 assaltantes de banco em circunstâncias ainda sob investigação, o presidente apanhou o celular e tuitou: “Bom trabalho!”. Passados quatro dias da morte do músico, nenhum tuite de Bolsonaro lamentou a morte do senhor Evaldo. Nem apresentou condolências à família. Tudo ficou a cargo dos generais.

Na semana passada, um grupo de comandantes de várias PMs esteve no Rio. O de São Paulo, coronel Marcelo Vieira Salles, contou aos colegas que tenta blindar sua tropa desse tipo de contágio vindo da política, por meio do contato direto com os subordinados. “É sempre assim”, diz o coronel José Vicente. Os políticos falam em “acertar a cabecinha”, que “bandido bom é bandido morto” e, esse discurso, às vezes, “é traduzido, na ponta da linha, como uma autorização para matar”. “Quando vem a conta, são a corporação e o policial que pagam. A responsabilidade pelos atos fica com quem está na ponta da linha”. A PM já sabe disso. O Exército só está aprendendo.

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