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Procuradoria no DF apontou indícios de 'esquema de rachadinha' ao entrar com ação de improbidade contra Bolsonaro e Wal do Açaí

Ministério Público Federal levanta 'suspeitas quanto ao destino final da remuneração paga' à ex-secretária parlamentar lotada por 15 anos no gabinete de Bolsonaro na Câmara dos Deputados e pede devolução de R$ 280 mil

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Por Rayssa Motta
Atualização:

Depois de quase quatro anos, a Procuradoria da República no Distrito Federal concluiu o inquérito civil sobre a contratação de Walderice Santos da Conceição, a Wal do Açaí, como secretária parlamentar do então deputado Jair Bolsonaro (PL) na Câmara.

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O desfecho da investigação foi a proposição de uma ação de improbidade administrativa contra o presidente e a ex-funcionária na 6.ª Vara Federal do Distrito Federal.

O Ministério Público Federal (MPF) cobra a devolução de R$ 280 mil. O montante corresponde aos salários pagos à Walderice entre fevereiro de 2003 e agosto de 2018, período em que constou como servidora no gabinete de Bolsonaro em Brasília. O valor atualizado ultrapassa R$ 498 mil.

O Estadão teve acesso à íntegra do inquérito, cujo sigilo foi levantado na semana passada. Os volumes somam mais de 1,2 mil páginas. Para os procuradores responsáveis pela apuração, ficou provado que Walderice nunca exerceu qualquer atribuição relacionada ao cargo e seria 'funcionária fantasma'.

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"Com pleno conhecimento de Jair Bolsonaro, e mediante a inserção de dados ideologicamente falsos na folha de frequência da ex-servidora, sob a responsabilidade do parlamentar, Walderice nunca exerceu, de fato, nenhuma atividade relacionada ao cargo de Secretário Parlamentar, embora a remuneração correspondente tenha sido paga regularmente durante todo esse período, o que implicou não só em enriquecimento ilícito dos requeridos, como inegável prejuízo aos cofres públicos", diz um trecho da ação. 

'Wal do Açaí' foi lotada no gabinete de Bolsonaro durante mais de 15 anos, mas admitiu que nunca esteve em Brasília. Foto: Reprodução/Facebook

Rachadinha

Durante o inquérito, a Procuradoria no Distrito Federal recebeu autorização para quebrar o sigilo bancário de Walderice. O relatório das transações bancárias apontou 'elevado percentual de saques' fracionados. Parte das retiradas foi feita em Barra Mansa, no litoral fluminense, onde o marido dela, Edenilson Garcia, nasceu e tentou se eleger vereador usando Bolsonaro como patrono político.

Os peritos identificaram 'movimentações atípicas', que segundo o Ministério Público Federal 'levantam suspeitas quanto ao destino final da remuneração paga' pela Câmara dos Deputados.

"Tais constatações guardam características típicas do que se denomina de "esquema da rachadinha", amplamente noticiado pela imprensa, por meio do qual parlamentares nomeariam assessores "fantasmas", normalmente familiares, amigos próximos ou pessoas de sua confiança, para que estes, posteriormente, transferissem a maior parte da sua remuneração para o parlamentar, enquanto permaneceriam com uma pequena quantia", alertam os procuradores.

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Também não foram identificados pagamentos de contas fixas, como água, luz e supermercado, após recebimento do salário.

"Em termos gerais, a movimentação bancária de uma pessoa com renda advinda do trabalho assalariado, apresenta um perfil, a qual consiste de um crédito (recebimento do salário) acompanhado de sucessivos débitos a título de pagamento de contas pessoais e do orçamento doméstico, bem como de saques para pagamento de despesas de reduzida monta. No entanto, não é o que acontece com a movimentação bancária da conta em análise de Walderice", observaram os peritos. 

Ministério Público Federal acredita que contratação de Wal do Açaí foi usada para pagar, com dinheiro da Câmara, serviços privados prestados pelo marido dela à família Bolsonaro. Foto: Reprodução

Depoimento

A Procuradoria no DF afirma que a nomeação de Walderice foi usada para pagar serviços prestados pelo marido dela na casa mantida por Bolsonaro em Mambucaba, distrito de Angra dos Reis, no litoral do Rio de Janeiro. Isso porque o próprio Garcia não poderia ser nomeado por receber aposentadoria por invalidez desde 1999. O casal mantinha uma chave do imóvel e alimentava os cachorros da família Bolsonaro.

"Tudo indica que a contratação de Walderice tenha sido a forma encontrada por Bolsonaro de remunerar Edenilson pelos serviços particulares que ele lhe prestava, sem prejudicar o recebimento do benefício previdenciário", registra o MPF.

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Em depoimento, Walderice admitiu que nunca esteve em Brasília e não possui computador ou e-mail. Segundo a ex-servidora, seu trabalho consistia em ligar mensalmente para Bolsonaro e reportar demandas da população. Ela afirmou, no entanto, que os moradores da região não sabiam do seu trabalho como assessora parlamentar. "Não tinha porquê me gabar", justificou.

Na avaliação do Ministério Público Federal, é 'contraditório' que uma assessora fosse mantida na região para receber as demandas da comunidade sem informar à população qual era o seu trabalho para viabilizar eventuais reivindicações.

Durante a oitiva, os investigadores ainda listaram as atribuições do cargo de secretário parlamentar, definidas pela Câmara dos Deputados, como coordenação de atividades administrativas; redação de ofícios, minutas de matérias legislativas e pronunciamentos; emissão de passagens; assessoramento em reuniões de comissões, audiências públicas ou outros eventos; e acompanhamento de matérias legislativas. Walderice disse que não cumpriu nenhuma delas e também não soube citar nenhum projeto apresentado por Bolsonaro na Câmara.

"O que eu fazia era só mesmo fazer esse intercâmbio entre ele [Bolsonaro] e a Vila Histórica pelo telefone, ou quando ele ia pra lá de férias eu passava as coisas para ele", afirmou.

A ex-secretária parlamentar de Bolsonaro também negou ser dona da loja de açaí onde foi flagrada pela Folha de S. Paulo durante o período em que deveria dar expediente em Brasília. Embora o comércio leve seu nome, ela afirmou em depoimento que a dona é a irmã.

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Antes de ser contratada como assessora parlamentar, Walderice trabalhou como diarista e vendedora de jornais. Ela estudou até o 5.º ano do ensino fundamental e não possui curso técnico.

Outro ponto que chamou atenção do MPF foi o destacamento de uma assessora parlamentar, por mais de 15 anos, para cuidar exclusivamente de uma região com cerca de 1,3 mil habitantes que não figura entre os principais redutos bolsonaristas.

"A reduzida extensão territorial da Vila de Mambucaba e o seu ínfimo número de habitantes, são circunstâncias que por si sós, demonstram a desnecessidade ou a irrazoabilidade de se manter um servidor exclusivamente para ouvir as demandas dos poucos moradores locais", observa a ação.

COM A PALAVRA, O PRESIDENTE JAIR BOLSONARO

A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Comunicação da Presidência para comentar a ação, mas não teve retorno. Em transmissão ao vivo na semana passada, o presidente disse que a ex-secretária tomou posse por procuração e, por isso, nunca esteve em Brasília.

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"Ela nunca esteve mesmo em Brasília, mora em um distrito de Angra dos Reis. Duvido algum deputado fora do DF que não tenha... Pode ter no máximo 25 servidores? Em média, metade fica aqui e metade no estado. Esse pessoal do estado não vem a Brasília, toma posse por procuração. Fiz isso a vida toda", disse em live nas redes sociais.

COM A PALAVRA, A EX-SECRETÁRIA PARLAMENTAR DE BOLSONARO

"Estamos no prazo para contestação e preparando uma defesa robusta que desmontará as alegações do MPF. Nos manifestaremos nos autos e, como bem ressaltado, o processo não corre em sigilo e, nesse cenário, fatalmente a imprensa terá acesso às nossas alegações oportunamente", informou ao blog o advogado Edgar Martinez, que representa a ex-secretária.

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