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'Tratamento precoce' de covid-19 citado por enfermeiro em vídeo não tem respaldo científico

Não há estudos científicos que comprovem a eficácia de hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, zinco e vitamina D contra o novo coronavírus

Por Victor Pinheiro
Atualização:

Em vídeo com mais de 2,4 milhões de visualizações no Facebook, um enfermeiro recomenda a adoção de "tratamento precoce" contra a covid-19 com hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, zinco e vitamina D. Diversos estudos já mostraram que esses medicamentos não funcionam no controle do coronavírus. Até o momento, não existe nenhum tratamento comprovadamente eficaz contra a doença. Nem a Organização Mundial de Saúde (OMS) nem a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomendam o uso dos remédios citados.

O enfermeiro que aparece no vídeo, Anthony Ferrari Penza, já foi desmentido em outras três ocasiões pelo Projeto Comprova -- coalizão de veículos de imprensa da qual o Estadão Verifica faz parte. Em uma delas, afirmou que um médico morreu por complicações da vacina de Oxford, o que é falso; o enfermeiro também disse que Etiópia e Austrália recomendam o uso de ivermectina, o que não é verdade; Penza chegou até mesmo a acusar governos estaduais e municipais de venderem corpos de vítimas da covid-19. Após a divulgação desse último vídeo, o Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro abriu um procedimento administrativo para apurar a atuação de Penza.

 Foto: Estadão

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No vídeo analisado nesta checagem, o enfermeiro afirma ser importante recorrer a um "tratamento precoce" já na primeira fase da covid-19, que ele chama de fase viral. "Você teve todos esses sintomas (dor de cabeça, coriza, dor de garganta) você já precisa urgentemente começar a primeira fase do tratamento, que é um protocolo recomendado por vários médicos. Azitromicina, hidroxicloroquina, zinco e ivermectina. Tudo com recomendação médica tá?", diz Penza na gravação.

Ao Estadão Verifica, o consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) Fábio Gaudenzi destaca que a covid-19 realmente apresenta uma fase de replicação viral no início da doença, mas pontua que ainda não foram identificados medicamentos eficazes para inibir a ação do vírus.

No vídeo, o enfermeiro diz ainda que a doença causada pelo novo coronavírus também se desenvolve em fases inflamatória e trombogênica; e chega a sugerir que "hoje existe cura" e que há tratamentos medicamentosos para cada etapa da infecção.

O infectologista Gaudenzi destaca que, assim como afirma Penza no vídeo, alguns corticoides são utilizados para modular a inflamação de pacientes em estado grave, e que esse procedimento foi adotado com base em respaldo científico. O médico da SBI diz ainda que em alguns casos o paciente pode desenvolver microtrombos, o que agrava bastante a doença. No entanto, diferentemente do que informa o enfermeiro, apenas o tratamento dos coágulos não é suficiente para resolver as complicações causadas pelo novo coronavírus.

Em resposta por telefone ao Estadão Verifica, o enfermeiro Anthony Ferrari disse que apenas informou sobre protocolos usados por colegas médicos -- que segundo ele, são aplicados no mundo inteiro. Ferrari afirmou que não recomendou nenhum medicamento, apesar de falar no vídeo que o tratamento precoce é "importante" e "urgente". Ele argumentou ainda que, embora não tenha comprovação científica de que os medicamentos funcionam, há evidências observacionais de médicos.

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Acompanhamento precoce

De acordo com Gaudenzi, embora não existam medicamentos com eficácia comprovada para o tratamento precoce da covid-19, práticas não medicamentosas podem auxiliar no combate nos primeiros estágios da doença. O infectologista destaca a importância do acompanhamento clínico e da orientação do paciente desde o início dos sintomas, seja por visitas programadas a unidades de saúde ou por teleconferência.

"O paciente precisa ser identificado no início dos sintomas, precisa ser examinado e depois monitorado, para que no caso de qualquer mudança no seu quadro clínico ele possa ser reavaliado e submetido a condutas de fisioterapia respiratória, oxigenação ou mesmo, no momento certo, o uso do corticoide", pontuou Gaudenzi ao Estadão Verifica.

Tratamento precoce com hidroxicloroquina é duvidoso

Embora presente no protocolo de manejo de pacientes com covid-19 do Ministério da Saúde, a aplicação da hidroxicloroquina no tratamento da doença não é indicada pela Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa). O órgão diz que ainda é arriscado afirmar que a substância vai funcionar no tratamento da doença e "não recomenda o uso indiscriminado do medicamento, sem a confirmação de que realmente funciona'', conforme o site da instituição

Hidroxicloroquina continua sem comprovação científica de sua eficácia no tratamento de pacientes com covid-19. Foto: Márcio Pinheiro/SESA

Em nota publicada em junho, a Sociedade Brasileira de Infectologia se opôs à recomendação da hidroxicloroquina para pacientes hospitalizados com covid-19. Sobre a aplicação do medicamento para tratamento nos primeiros dias da doença, em casos leves e moderados, a organização afirma que essa possibilidade ainda é avaliada e que se aguardam resultados de pesquisas científicas.

Nota SBI

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Um estudo clínico randomizado com 423 pacientes, publicado na revista científica Annals of Internal Medicine, concluiu que a hidroxicloroquina não reduz a severidade ou prevalência de sintomas em pacientes não hospitalizados com sintomas iniciais da covid-19. Os autores destacam, porém, que mais estudos são necessários para confirmar os resultados. 

Já uma pesquisa realizada na Bélgica com cerca de 8 mil participantes indicou uma redução da mortalidade por covid-19 em pacientes medicados com doses baixas da droga. Os próprios autores afirmaram em entrevista ao projeto Comprova, no entanto, que o trabalho não é suficiente para atestar a eficácia da hidroxicloroquina em qualquer estágio da doença. 

Ivermectina

A ivermectina apresentou potencial de inibir o novo coronavírus em testes em laboratório. Um estudo conduzido pela universidade australiana Monash University detectou a eliminação de 100% do microrganismo em experimentos in-vitro em 48h. Ainda não há, entretanto, evidências que comprovem que o mesmo resultado pode ser obtido no organismo humano. 

Diante da incerteza, a Anvisa publicou em julho uma nota contra a recomendação do uso indiscriminado do vermífugo. A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), por sua vez, "aconselha fortemente contra o uso de ivermectina para quaisquer outros propósitos diferentes daqueles para os quais seu uso está devidamente autorizado.". 

A entidade diz em seu site que uma revisão de estudos publicados entre janeiro e maio de 2020 mostrou que os trabalhos apresentavam um alto risco de viés e as evidências existentes eram insuficientes para se chegar a uma conclusão sobre os benefícios e danos do medicamento. 

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Pedestres usam máscara para se prevenir do coronavírus no centro de São Paulo Foto: Alex Silva/Estadão

Azitromicina

Também não há dados que sustentem o uso da azitromicina contra a covid-19 em qualquer fase da doença. O medicamento é um antibiótico com efeito antibacteriano e não age diretamente contra o vírus. Segundo o informe da Sociedade Brasileira de Infectologia, o benefício clínico do efeito "anti-inflamatório e imunomodulador" da azitromicina em pacientes com covid-19 ainda está por ser comprovado. 

Um estudo brasileiro publicado na revista Lancet em setembro indicou que a droga não acelera a melhora, nem reduz a mortalidade de pacientes em estado grave da doença. Outra pesquisa brasileira, publicada no New England Journal of Medicine, apontou que o antibiótico não apresentou resultados satisfatórios combinada a hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com sintomas leves e moderados. 

Zinco e Vitamina D

No vídeo, Anthony Ferrari também aborda o uso de suplementos alimentares como zinco e a vitamina D. Segundo Fábio Gaudenzi, no entanto, nenhum trabalho conseguiu demonstrar que o uso de suplementação com essas substâncias reduz a possibilidade de pessoas contraírem a covid-19 ou apresentarem quadros mais graves da doença. 

O infectologista afirma que o engano tem origem em uma interpretação equivocada de trabalhos que sugerem que a deficiência de nutrientes pode estar associada ao desenvolvimento de sintomas mais graves da covid-19. Gaudenzi explica que a suplementação deve ser orientada somente a pessoas com carência dessas substâncias. 

"Pessoas com deficiências nutricionais têm um deficit global de imunidade. Só que o excesso de vitaminas também não ajuda. O ideal é estar em equilíbrio", afirma o médico. "Esse equilíbrio vai manter o seu organismo com o melhor desempenho possível para enfrentar a doença, mas não quer dizer que você tem uma superimunidade, esteja superprotegido ou completamente imune ao novo coronavírus", destaca. 

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A prevenção é o caminho

Para o médico infectologista, o fator decisivo em relação à covid-19 é a prevenção. Segundo ele, embora já se tenha conhecimento sobre os riscos associados a comorbidades e a idade avançada de pacientes, ainda não há como prever quem vai desenvolver quadros leves ou graves da doença. "É uma loteria que o melhor é não jogar", afirma. 

Gaudenzi pontua que a covid-19 é uma doença multifatorial. "Hoje sabemos, por exemplo, que a carga viral a qual o paciente foi exposto é também um componente muito importante, por isso a importância de equipamentos de proteção e máscaras". 

Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.

Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook  é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas:  apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.

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