Páginas bolsonaristas e grupos conservadores no Facebook espalham a alegação falsa de que a Fiat teria sofrido um prejuízo de "mais de 100 milhões em vendas" por conta de um suposto boicote contra a marca, em apoio ao jogador de vôlei Maurício Souza. O atleta foi dispensado do Minas Tênis Clube depois de fazer declarações homofóbicas nas redes sociais. A equipe é patrocinada pela fabricante italiana, que pressionou os diretores a tomarem medidas sobre o ocorrido.
Apesar de uma campanha do tipo realmente ter sido levantada por figuras como o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) e a deputada federal Carla Zambelli (PSL-DF) -- Maurício apoia publicamente o presidente Jair Bolsonaro -- não há indícios de que "milhares de clientes" realmente tenham deixado de adquirir produtos da Fiat. Da mesma forma, não existe qualquer informação sustentando que o episódio tenha resultado em perdas na ordem de R$ 100 milhões para a marca.
Procurada pelo Estadão Verifica, a Stellantis, grupo do qual a Fiat faz parte atualmente, declarou que "absolutamente nenhuma das informações do referido texto têm procedência". A assessoria de comunicação também informou, por telefone, que nenhum representante italiano da empresa comentou sobre o caso e que a declaração atribuída na postagem a um "sócio majoritário de Turim" não faz sentido.
A Fiat fechou o mês de outubro como líder de vendas de automóveis e comerciais leves no Brasil, de acordo com dados de emplacamentos divulgados pela Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave). A fabricante comercializou 29.397 unidades no período, o que representa uma participação de 19,59% do mercado brasileiro.
O volume de vendas supera levemente o mês anterior (29.038), ainda que a participação tenha sofrido uma pequena queda (20,40%). Como a polêmica do jogador Maurício Souza é recente, ainda não é possível descartar algum impacto. Fato é que as informações do post não têm base na realidade.
Boato inventa reação negativa de 'sócios' na Itália
A Fiat é uma das marcas da Stellantis, uma das maiores montadoras do mundo, criada a partir da fusão entre o conglomerado FCA (Fiat Chrysler Automobiles) com o grupo francês PSA, dono da Peugeot e da Citröen. O acordo foi oficializado em 16 de janeiro de 2021.
Em março deste ano, segundo um documento oficial da empresa, os principais acionistas da Stellantis eram a Exor (14,4%), uma holding italiana da família Agnelli, que fundou a Fiat e detinha a maior fatia da FCA; a família Peugeot (7,2%); BPI, banco de investimentos do Estado da França (6,2%); e a montadora chinesa Dongfeng Motor Corporation (5,6%).
Uma busca no Google por esses nomes e a palavra-chave "Maurício Souza" não retorna nenhum artigo que sustente as afirmações do post. O Estadão Verifica também procurou por declarações relacionadas dos três principais executivos da empresa -- John Elkann, presidente da Stellantis, Robert Peugeot, vice-presidente, e Carlos Tavares, CEO -- mas nada foi encontrado.
A Stellantis está listada em bolsas de valores de Nova York, Milão e Paris. Em Nova York (Nasdaq), por exemplo, nesta quinta-feira, 4 de novembro, a ação estava cotada a US$ 20,37. Desde que o comunicado da Fiat do Brasil sobre o caso do jogador de vôlei foi divulgado, os papéis acumulam alta de 0,39% -- o que, evidentemente, não estabelece uma relação causal entre esses fatos.
O dado do mercado financeiro, por outro lado, assim como a ausência de comentários públicos de executivos da Stellantis, desmente a tese do post de que a decisão de repudiar uma declaração homofóbica no Brasil "chamou a atenção dos sócios de todo o planeta".
Em 2020, a FCA teve faturamento global de EUR 86,7 bilhões e lucro de EUR 24 milhões, resultado afetado pela pandemia de covid-19. A PSA faturou EUR 60,7 bilhões e reportou lucro de EUR 2 bilhões no ano passado. Uma eventual perda de R$ 100 milhões no Brasil (em torno de EUR 15,7 milhões) representaria cerca de 0,1% do faturamento anual das empresas somadas.
O caso Maurício Souza
Em 12 de outubro, Maurício Souza -- jogador do Minas Tênis Clube, equipe que disputa a Superliga no Brasil -- compartilhou no Instagram a imagem de uma notícia sobre a nova versão do Superman, que se assumiu bissexual nos quadrinhos. "A é só um desenho, não é nada demais. Vai nessa que vai ver onde vamos parar... (sic)", escreveu o atleta. O comentário gerou críticas da comunidade LGBTQIA+ e de alguns colegas, como o ponteiro Douglas Souza, que é gay.
Diante da repercussão, o Minas divulgou uma nota oficial, em 25 de outubro, dizendo que não aceita manifestações homofóbicas e que estava conversando com Maurício e o orientando sobre o assunto.
No dia seguinte, 26 de outubro, os principais patrocinadores do clube, Fiat e Gerdau, também divulgaram comunicados nas redes sociais cobrando a "adoção de medidas cabíveis, o mais breve possível". O Minas então anunciou o afastamento do atleta por tempo indeterminado e solicitou uma retratação pública.
Maurício postou um pedido de desculpas nas redes que, novamente, não foi bem recebido. Primeiro, o fez somente em sua conta no Twitter, que tinha cerca de 60 seguidores. Os patrocinadores consideraram a ação insuficiente e cobraram uma manifestação no mesmo perfil usado anteriormente, ou seja, o Instagram, com mais de 300 mil seguidores, e a remoção do conteúdo homofóbico.
Em 27 de setembro, o atleta dizendo que não era a sua intenção ofender alguém "por minha opinião e por defender aquilo que eu acredito". O jogador também reclamou não poder colocar os "valores da família acima de tudo". Poucas horas depois, teve o contrato rescindido.
O post sobre o Superman continua no ar, acompanhado agora de uma outra foto do herói da DC Comics beijando a Mulher Maravilha e críticas contra a "turma da lacração" em seu perfil, a quem responsabiliza por sua demissão. O caso também pode custar futuras convocações para a Seleção Brasileira.
Boatos sobre boicotes aparecem com frequência
Essa não é a primeira vez que boatos sobre supostos impactos milionários de boicotes circulam nas redes sociais. A mesma tática foi usada por grupos conservadores, no ano passado, para criticar uma campanha de Dia dos Pais da Natura com o ator Thammy Miranda. A intenção é exagerar o impacto e gerar a sensação no leitor de que a maioria da população discordaria de ações afirmativas. Fique atento a correntes que trazem informações vagas e não citam fontes confiáveis de informação, caso deste conteúdo analisado.
Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.
Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas: apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.