Em CPI, Mayra Pinheiro repete alegações falsas de Pazuello sobre TrateCOV

Secretária disse que aplicativo que recomendava 'tratamento precoce' teve dados extraídos indevidamente, o que é falso; veja outras checagens de depoimento à comissão

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Foto do author Fabiana Cambricoli
Por Pedro Prata , Alessandra Monnerat e Fabiana Cambricoli
Atualização:

Atualizada às 20h.

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Durante depoimento na CPI da Covid, a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação no Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, repetiu alegações falsas feitas pelo general Eduardo Pazuello a respeito do aplicativo TrateCOV. A médica, conhecida como "Capitã Cloroquina", disse que a plataforma teve os dados "extraídos indevidamente". Na realidade, o app estava disponível ao público no site oficial do ministério. Ela também fez afirmações falsas sobre uma pesquisa com cloroquina em Manaus. Leia abaixo a checagem do Estadão Verifica.

Mayra Pinheiro durante depoimento na CPI da Covid. Foto: Gabriela Biló/Estadão

"Ele não foi colocado no ar. Foi apresentada uma versão prototípica dele. O que foi feito foi uma extração indevida na madrugada do dia 20 por um jornalista. Ele fez uma cópia da capa inicial dessa plataforma, abrigou nas redes sociais e começou a fazer simulações fora de qualquer contexto epidemiológico. Causando prejuízos à sociedade. Essa ferramenta poderia ter salvo muitas vidas. [...] Tudo isso foi perdido com essa invasão. A decisão do ministro foi retirar a plataforma do ar para que se fizesse a investigação necessária.

[...]

Renan Calheiros: Vossa Senhoria afirmou que a plataforma foi hackeada, informação que foi ratificada pelo ministro Pazuello em seu depoimento a esta comissão, que disse que o TrateCOV foi roubado, alterado, e distribuído por uma pessoa já identificada pela polícia. Quem é o responsável por esse crime cibernético?

Mayra: É um jornalista, Rodrigo Menegat. [...] O termo não é hackeamento, é extração indevida de dados. Não houve alteração porque o sistema é seguro. O que ele fez foram simulações indevidas".

É falso que o jornalista Rodrigo Menegat, que trabalhou no Estadão até 2020, tenha "roubado, alterado e distribuído" o aplicativo TrateCOV. O código-fonte do aplicativo foi publicado pelo próprio Ministério da Saúde em janeiro de 2021. O que o jornalista fez foi salvar uma cópia do código no GitHub, uma plataforma de hospedagem de arquivos de programação. 

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"Todos os arquivos foram obtidos simplesmente ao acessar a aba network do inspetor de elementos do navegador Google Chrome", escreveu Menegat. "Na prática, todos eles já estavam disponíveis, nesse mesmo estado, para qualquer usuário que acessasse o site."

De fato, qualquer pessoa pode inspecionar o código-fonte de páginas na internet. Isso não é crime. No Google Chrome, basta pressionar as teclas Crtl e U para exibir o código de um site. Também é possível clicar com o botão direito na página e selecionar "inspecionar" para visualizar os elementos de um site em html. Veja abaixo um exemplo no site do Estadão.

 Foto: Estadão

Menegat também salvou a plataforma publicada pelo Ministério da Saúde no site WayBack Machine, que guarda cópias de páginas na internet antes que elas possam ser alteradas. Qualquer um pode ver como o TrateCOV funcionava quando estava no ar clicando neste link.

Como o Estadão Verifica já mostrou, o TrateCOV foi lançado oficialmente pelo Ministério da Saúde em 11 de janeiro, em cerimônia oficial. No lançamento, não foi mencionado que o aplicativo era um protótipo. Na reportagem da TV Brasil que anunciou a plataforma, um médico diz ter usado o aplicativo e a repórter diz que o app já vinha sendo utilizado por profissionais de saúde de Manaus.

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A própria reportagem do Estadão fez simulações na plataforma que estava no ar e verificou que medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19, como cloroquina e ivermectina, eram recomendados em diversas situações -- até mesmo em caso de sintomas como náusea e diarreia em bebês. Após receber críticas, a plataforma foi retirada do ar em 21 de janeiro.

"Eu creio que todos os brasileiros, principalmente os médicos, professores universitários e os senhores também, pelo nível de formação intelectual, sabem que, para a gente aprovar um estudo, a gente precisa do parecer da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. E esse estudo de Manaus (sobre cloroquina) chama atenção porque ele só obteve o parecer do Comitê de Ética em Pesquisa depois do estudo pronto".

A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), responsável no Brasil por autorizar e fiscalizar estudos com humanos, desmentiu a declaração de Mayra sobre estudo feito em Manaus em abril de 2020 que demonstrou riscos do uso de altas doses da cloroquina contra a covid.

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Ao Estadão, o presidente da Conep, Jorge Venâncio, negou o fato. "Mentira completa. O protocolo foi aprovado em 23 de março de 2020. Não aceitamos estudos já iniciados", disse. O número do protocolo, que pode ser acessado no sistema Plataforma Brasil, que traz todas as pesquisas aprovadas pela Conep, é CAEE 30152620.1.0000.0005.

Mayra citou o estudo para propagar mais uma desinformação: a de que 22 pacientes participantes dos testes morreram por terem recebido doses tóxicas de cloroquina. De acordo com o artigo científico com resultados do estudo, esse é o número de pacientes que morreram de covid-19 ao longo da pesquisa, incluindo os que nem sequer estavam no grupo que recebeu a maior dose da medicação.

"A hidroxicloroquina tem ação antiviral comprovada desde 2005".

A cloroquina não é um antiviral. Ela é usada, assim como o seu derivado hidroxicloroquina, para o tratamento de malária e amebíase hepática, doenças causadas por protozoários, e de lúpus e artrite reumatoide, doenças autoimunes, além de algumas condições dermatológicas provocadas ou agravadas pela luz solar. As informações constam nas bulas dos medicamentos registradas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Veja aqui as bulas da cloroquina e da hidroxicloroquina.

A hidroxicloroquina já apresentou ação antiviral em placas de laboratório, mas essa é apenas a primeira fase de testes para validar a ação de um medicamento. Isso não é suficiente para comprovar sua eficácia e utilização contra doenças. Isso porque é preciso realizar testes em animais e seres humanos para verificar como o medicamento interage com a enorme complexidade de um organismo vivo. Também é necessário averiguar se a droga tem alguma eficácia sob dosagens seguras para o consumo humano. Quando testada em animais e em seres humanos, a hidroxicloroquina não mostrou vantagem para o quadro clínico dos pacientes.

Organizações de referência em saúde como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e sua equivalente nos Estados Unidos, a FDA, afirmam que até o momento não há evidência de eficácia da hidroxicloroquina contra covid-19. Mais do que isso, a OMS recomenda fortemente não utilizar o medicamento.

"A própria OMS, que recomendou o lockdown, hoje diz que ele pode ser responsável pela fome e miséria."

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A alegação engana ao sugerir que a OMS teria mudado seu posicionamento com relação a medidas de isolamento social rígidas, conhecidas como lockdown. O Estadão Verifica já desmentiu postagens em redes sociais que diziam que um enviado especial da OMS teria dito que "a única coisa que os lockdowns conseguiram foi pobreza". 

Em seu site, a OMS informa que reconhece a importância de lockdowns para frear a transmissão do coronavírus, tendo em vista que o contato entre pessoas é restringido. A organização aponta que, em determinados momentos, alguns países "não tiveram opção a não ser decretar lockdowns para ganhar tempo".

A OMS ressalta que tais medidas têm um "impacto negativo profundo" em indivíduos, comunidades e sociedades. E lembra que os mais afetados são os "mais pobres, imigrantes e refugiados, que dependem do trabalho do dia-a-dia para subsistir". No entanto, termina dizendo que "espera que os países utilizem intervenções onde e quando forem necessárias, baseados na situação de cada local".

"Eu trouxe um protocolo de chikungunya em que o Ministério da Saúde preconiza... [...] Chikungunya é uma arbovirose. O Ministério da Saúde já preconizou oficialmente 600 mg de hidroxicloroquina, podendo ser usado por cinco anos. Está aqui o protocolo. A recomendação é: não há necessidade de acompanhamento eletrocardiográfico."

Documento elaborado pelo Ministério da Saúde, em 2017, recomenda a utilização de cloroquina e hidroxicloroquina contra a Chikungunya para o tratamento da fase crônica da doença, como alegou a secretária. No entanto, a publicação deixou claro que as evidências eram frágeis e iniciais, e apontou o risco de efeitos colaterais, principalmente com o uso contínuo do remédio.

"Há um número limitado de publicações relativas a uso de drogas na fase crônica da chikungunya, com trabalhos com pequeno número de pacientes, utilizando diferentes metodologias, que não permite no momento tirar conclusões de eficácia de drogas, ou avaliar superioridade entre as diferentes terapias", mostra o documento.

"Não visitei as UBS para recomendar o tratamento precoce".

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É enganoso. Não foi possível encontrar registros de que a secretária tenha visitado Unidades Básicas de Saúde (UBS), mas ela foi sim a unidades de saúde do Amazonas para promover o tratamento precoce. Segundo o Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro visitou seis unidades de saúde de Manaus em 4 de janeiro.

Na ocasião, ela disse que "para diminuir o número de internações, é importante que a gente possa dar aos pacientes o direito de receber essas medicações comprovadas por diminuírem a taxa e o tempo de internamento e de mortes. Se nós queremos evitar o prolongamento do colapso nos sistemas, é preciso que a gente tenha como uma das estratégias a adoção do tratamento precoce, que possui mais de 150 evidências científicas", concluiu.

A comitiva do Ministério da Saúde também foi registrada pela secretaria estadual de saúde. O site da secretaria informa que o grupo visitaria unidades de saúde da Secretaria de Estado de Saúde (SES-AM) que atendem pacientes com covid-19.

"No caso da ivermectina, estudos de meta-análises mostram que pode haver redução de hospitalização e óbitos em até 65%. Então, esse critério é importante, é o que norteia os médicos."

As principais agências regulatórias do mundo indicam não haver dados suficientes para recomendar o uso de ivermectina contra a covid-19. O medicamento é registrado e comprovadamente eficaz no tratamento de parasitas em animais e alguns problemas de pele. Não é registrado como antiviral. 

A Agência Europeia de Medicamentos (EMA) recomendou CONTRA o uso da ivermectina para tratar covid-19 fora de estudos clínicos. A agência revisou estudos clínicos e meta-análises e concluiu que o medicamento mostrou atividade antiviral em laboratório, porém "em concentrações muito maiores do que as atualmente autorizadas". Ao analisar os estudos clínicos, os técnicos da agência concluíram que até o momento não é possível concluir que ela tenha benefícios ou potenciais benefícios.

A agência norte-americana Food and Drugs Administration (FDA) não aprovou o uso de ivermectina para o tratamento da covid-19. A agência alerta que é perigoso tomar um medicamento para um fim que não o aprovado por agências regulatórias. Pessoas nos EUA relataram hospitalização após se automedicarem com ivermectina voltada para cavalos.

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O Ministério da Saúde do Brasil publicou nota técnica em 3 de maio na qual analisou estudos publicados sobre a ivermectina e disse que "os resultados desta síntese não parecem ser suficientes para suportar recomendação de uso da ivermectina no tratamento de pacientes com covid-19, sendo que a recomendação da OMS para que a ivermectina seja utilizada, apenas, em protocolos de pesquisa clínica parece ser adequada".

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