É falso que estudo de 2005 tenha comprovado cura da infecção por coronavírus com cloroquina

Boato distorce estudo que identificou ação da droga contra vírus causador da SARS; resultados foram observados apenas em laboratório

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Por Pedro Prata
Atualização:

Atualizada às 15h05 de 20 de agosto de 2020.

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É falso que cientistas já soubessem desde 2005 sobre a eficácia da cloroquina no tratamento e prevenção da covid-19. Um boato tira de contexto um estudo sobre o SARS-CoV, agente infeccioso da mesma família do novo coronavírus. Postagens enganam ao não mencionar que a pesquisa havia sido feita apenas com células em laboratório, primeiro passo da testagem de medicamentos.

O Estadão Verifica checa conteúdos virais suspeitos sobre a pandemia causada pelo novo coronavírus, e uma das publicações com essa informação falsa foi visualizada 2.790 vezes no Instagram. "Bomba?stico! Todos os virologistas ja? sabiam. Artigo que saiu no Jornal de Virologia de 2005!", diz a legenda. O boato traz a reprodução do título de um artigo científico publicado na revista científica britânica Virology Journal.

O estudo "Cloroquina é um potente inibidor da infecção e propagação de SARS coronavírus" de fato foi publicado na revista científica em 22 de agosto de 2005. A pesquisa foi conduzida com o então recém-descoberto coronavírus (SARS-CoV), causador da síndrome aguda respiratória grave (SARS, em inglês). Essa doença foi identificada em fevereiro de 2003, na China, e atingiu quatro países, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Importante ressaltar que este vírus não é o mesmo que o novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da covid-19.

 Foto: Reprodução

A conclusão do estudo sugere que a droga tem efeito antiviral contra infecções causadas pelo vírus causador da SARS. No entanto, tal efeito foi comprovado apenas em células de um meio de cultura em laboratório. Este é o primeiro passo no estudo de um medicamento, explica Lucile Maria Floeter Winter, diretora da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Depois disso, os testes precisam passar por animais e seres humanos, onde se compreenderá os efeitos colaterais, a forma como o organismo interage com a droga e até a dosagem correta do remédio.

"Uma substância que se mostra promissora em testes in vitro, pode não ter o mesmo desempenho nos testes in vivo. Normalmente, um estudo com mil potenciais substâncias acaba resultando em poucas (1 a 3) que realmente se mostram ativas em testes em humanos", disse Winter ao Estadão Verifica.

Um dos autores do estudo, Stuart Nichol, pesquisador sênior de febres hemorrágicas virais e outros patógenos de alta gravidade do Center for Disease Control (CDC), dos Estados Unidos, disse ao Estadão Verifica que "este estudo não fornece dado algum sobre a eficácia da cloroquina na prevenção ou tratamento da SARS em humanos ou animais".

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Hidroxicloroquina

Especialistas afirmam que estudos já desmontaram a teoria de que a hidroxicloroquina teria efeito de curar a covid-19 em humanos. Pesquisas que medem os efeitos do medicamento em células em laboratório geralmente utilizam células do rim de macacos, explica a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC). Nessas células, o novo coronavírus entra por meio de uma estrutura chamada endossomo, que depende da acidez do meio -- isto é, do pH. Como a cloroquina altera essa característica, o medicamento bloqueia a ação do novo coronavírus nessa situação específica.

O mesmo não acontece nas células do trato respiratório. "O novo coronavírus utiliza outro caminho de entrada. Ele utiliza uma via transmembrana, facilitada por uma proteína (TMPRSS2). Por isso é que a cloroquina não funciona em seres humanos (para tratar a covid-19)", explicou Pasternak ao Estadão Verifica.

A cloroquina é um remédio conhecido pelos médicos há bastante tempo e usado em pacientes com malária. Sua derivada hidroxicloroquina também é usada no tratamento de lúpus e artrite reumatoide. A utilização no tratamento de pacientes com covid-19 foi inicialmente endossada por médicos do sul da França. O estudo publicado por eles, no entanto, acabou amplamente contestado.

Uma revisão publicada em julho no International Journal of Antimicrobial Agents diz que o estudo tem "grandes problemas metodológicos" que o tornam "infundado" e "irresponsável". O artigo elenca dez erros, dentre os quais está o fato dos pesquisadores desconsiderarem na conclusão final três pacientes que tomaram a hidroxicloroquina e mesmo assim foram transferidos para a UTI e um que morreu.

Anthony Fauci

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O boato também engana ao dizer que o imunologista Anthony Fauci seria o diretor do National Institutes of Health (NIH), conglomerado de centros de pesquisa do governo norte-americano, desde 2009, e que teria relação com a publicação da revista científica. Na verdade, o diretor do NIH desde aquele ano é Francis S. Collins, indicado pelo ex-presidente Barack Obama.

Anthony Fauci é diretor de apenas um destes centros de pesquisa, o National Institute of Allergy and Infectious Disease (NIAID), desde 1984. Ele coordena pesquisas sobre AIDS, infecções respiratórias, diarréias, tuberculose e malária, bem como novas doenças como Ebola e Zika. Atualmente ele está à frente da resposta dos Estados Unidos à pandemia de covid-19.

É falso que o Virology Journal seja uma publicação do NIH. Ela é uma das revistas da BiomedCentral, editora britânica especializada na publicação de estudos científicos.

Este boato também foi checado por AFP e Agência Lupa.

Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.

Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook  é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas:  apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.

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