Relatório da CPI acusa o governo Bolsonaro de agir com ‘dolo’ na pandemia

Documento de 1.052 páginas atribui ao presidente e a Pazuello o crime de homicídio qualificado; peça ainda pode ser alterada

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Por André Shalders , Julia Affonso e
Atualização:

BRASÍLIA - O relatório final da CPI da Covid, do Senado, conclui que o governo Bolsonaro agiu de forma dolosa, ou seja, intencional, na condução da pandemia e, por isso, é responsável pela morte de milhares de pessoas. O Estadão teve acesso ao documento, que tem 1.052 páginas, e seria apresentado aos senadores da CPI na próxima terça-feira, 19. A apresentação, porém, foi adiada. “O governo federal criou uma situação de risco não permitido, reprovável por qualquer cálculo de custo-benefício, expôs vidas a perigo concreto e não tomou medidas eficazes para minimizar o resultado, podendo fazê-lo. Aos olhos do Direito, legitima-se a imputação do dolo (intenção de causar dano, por ação ou omissão)”, diz trecho da peça, que ainda pode ser alterada até terça-feira. No dia seguinte, os senadores devem começar a votação do relatório. 

1.052 páginas tinha a última versão do relatório final, até o início da noite de sábado

A conclusão será encaminhada aos órgãos de controle, que poderão abrir processos sobre os supostos crimes apontados. Isso ocorre porque a CPI tem poderes de investigação, mas não de punição.

Relatório da CPI da Covid atribui ao presidente Jair Bolsonaro o crime de homicídio qualificado; texto ainda pode ser alterado. Foto: Gabriela Biló/Estadão - 11/8/2021

O documento faz um diagnóstico do que, na visão da comissão, provocou a morte de 600 mil pessoas no Brasil. Com base nessas investigações, os senadores afirmam ter encontrado indícios de omissão e “desprezo técnico” durante a tragédia sanitária.

4 é o número de pedidos de indiciamento por homicídio contra Bolsonaro, Pazuello, Elcio Franco e uma médica da Prevent Senior

Em uma mudança de entendimento, o texto passou a imputar a Bolsonaro e ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, o mais longevo da pandemia, o crime de homicídio qualificado. Até então, o relatório atribuía a ambos o crime de homicídio comissivo – praticado por omissão. O argumento da CPI é de que Bolsonaro sabia dos riscos que oferecia à população e os assumiu.

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A seguir, os principais pontos do documento.

1. Gabinete paralelo

O relatório aponta que um “gabinete paralelo”, composto por médicos, políticos e empresários que não faziam parte do governo, assessorou informalmente Bolsonaro. As orientações não tinham respaldo científico e foram determinantes “para o desastre na gestão da pandemia”. Elas influenciaram ações e discursos do presidente e, consequentemente, o comportamento de milhões de brasileiros. O grupo era formado por Nise Yamaguchi, Osmar Terra, Arthur Weintraub, Carlos Wizard e Paolo Zanotto.

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409 menções há no texto a Bolsonaro

2. Imunidade de rebanho

Por orientação do gabinete paralelo, o governo Bolsonaro estimulou a população a seguir sua rotina e ignorar medidas de proteção, como o uso de máscaras e o distanciamento social. A ideia era contaminar a maior parte da população brasileira para que o País procedesse a uma suposta “imunidade de rebanho”. A estratégia tinha como objetivo forçar a volta da atividade econômica.

3. Tratamento precoce

O governo Bolsonaro fez uma “defesa incondicional e reiterada” de medicamentos com ineficácia comprovada contra a covid, como a hidroxicloroquina, a azitromicina e a ivermectina. A conduta levou brasileiros a abrir mão de medidas como o distanciamento social e o uso de máscaras. Além disso, fez com que o País gastasse milhões de reais em vão, com medicações que não funcionavam. Em 2020, foram R$ 41 milhões para itens do chamado “kit covid”, segundo um cálculo conservador da CPI. A maior parte foi desembolsada quando havia farta evidência de que o remédio não surtia efeito. “A insistência aponta para o presidente como o principal responsável pelos erros de governo.”

Presidente Jair Bolsonaro mostra caixa de cloroquina durante evento. Foto: Gabriela Biló/Estadão - 16/09/2020

4. Oposição a medidas não farmacológicas

O relatório aponta que o governo desestimulou a adoção de medidas não farmacológicas contra o vírus, como o isolamento social e o uso de máscara. O texto afirma que, se as medidas tivessem sido aplicadas, 120 mil vidas poderiam ter sido salvas até março de 2021.

5. Atraso na compra de vacinas

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A demora “deliberada” e “injustificável” para a compra de vacinas da Pfizer e a Coronavac foi considerada “a mais grave omissão” do governo federal na pandemia e contribuiu “decisivamente” para o alto número de casos e mortes no País. A imunização não foi uma prioridade, como também uma legislação para aquisição e o uso das vacinas.

6. Crise no Amazonas

O governo federal foi omisso não apenas no monitoramento da falta de insumos no Amazonas, mas também depois de instalada a crise de desabastecimento de oxigênio. Pacientes internados com a covid-19 morreram por asfixia. Segundo o relatório, o governo Bolsonaro fez do Amazonas um “laboratório humano”. Em Manaus, o Ministério da Saúde incentivou o uso de remédios comprovadamente ineficazes. A propaganda incentivou experiências que violaram princípios éticos e causaram a morte de pessoas. Em seguida, a falta de uma coordenação nacional para o monitoramento do consumo de oxigênio em hospitais criou uma corrida pelo produto em outras partes do País.

Servidores realizam sepultamento no cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus Foto: AP Photo/Edmar Barros

7. Vacina Covaxin

O relatório lista uma série de irregularidades na contratação de R$ 1,6 bilhão da vacina indiana Covaxin. O interesse no imunizante foi informado por Bolsonaro em carta de 8 de janeiro de 2021 ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi. Na mesma época, o governo ignorava as ofertas da Pfizer. O documento cita ausência de estimativa de preço, aumento de 1.000% no valor estimado do imunizante, entrega de documentos falsos ao Ministério da Saúde e garantia irregular da Fib Bank. As provas entregues pelos irmãos Miranda também são indicadas no documento: pedido de pagamento 100% adiantado e transferência para uma offshore fora do contrato. O relatório sugere o indiciamento de cinco funcionários da Precisa Medicamentos, dentre eles o dono, Francisco Maximiano.

8. Hospitais federais do Rio

A partir de denúncias de corrupção no governo de Wilson Witzel, a CPI identificou fortes suspeitas de mau uso de recursos públicos em hospitais federais do Rio que foram destacados para receber pacientes com a covid-19. Os desvios, portanto, teriam prejudicado o atendimento aos pacientes porque comprometeram a oferta de leitos e as condições de trabalho dos profissionais da saúde. No entanto, a CPI alega que teve pouco tempo para analisar todas as denúncias. Encerrou, então, compartilhando os documentos que obteve com o Ministério Público Federal, para eventual abertura de processos.

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9. Caso VTCLog, a operadora de logística

O relatório final indica que a VTCLog, empresa responsável pela logística dos medicamentos no Ministério da Saúde, pode ter feito um truque chamado “jogo de planilha” para aumentar seu lucro. Num aditivo ao contrato, a empresa passou a cobrar R$ 18,9 milhões por um item de seus serviços – a manipulação de itens – que antes estava orçado por menos da metade. O aditivo acabou suspenso, mas o texto final da CPI recomenda nova licitação para substituir a VTCLog, e que a empresa seja investigada pelo Ministério Público Federal e pelo TCU.

Sede do Ministério da Saúde, em Brasília Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

10. Análise orçamentária da pandemia

Em outro tópico, o relatório traz uma análise minuciosa dos gastos do governo com o combate à pandemia. Até agosto de 2021, a União já destinou R$ 759,7 bilhões para esta finalidade, sendo que R$ 385 bilhões foram para o auxílio emergencial. O gasto com vacinas foi bem menor – R$ 2,9 bilhões em 2020 e mais R$ 5,5 bilhões este ano. O texto também cita uma apuração em curso no Tribunal de Contas da União (TCU) que investiga se a pasta teria usado recursos do enfrentamento à pandemia para despesas cotidianas, não relacionadas à emergência sanitária. O tópico ainda traz uma estimativa dos gastos com o chamado “kit covid”: ao menos R$ 41,07 milhões gastos com cloroquina e hidroxicloroquina; e mais R$ 15,6 milhões com azitromicina.

R$ 30,6 milhões é o valor gasto com cloroquina e hidroxicloroquina

11. Proteção a indígenas e quilombolas

O texto final da CPI usará o termo “genocídio” para qualificar a atuação de Jair Bolsonaro em relação aos povos indígenas. Segundo a comissão, “fica nítido o nexo causal entre o anti-indigenismo do mandatário maior e os danos sofridos pelos povos originários, ainda que, como outros líderes acusados de genocídio, não tenha ele assassinado diretamente pessoa alguma”, diz um trecho. Nem a lei brasileira nem o Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI), exigem a eliminação total de um grupo para caracterizar o genocídio: basta que exista a intenção de fazê-lo. Este seria o intento de Bolsonaro.

84 é o número de citações a “genocídio” no relatório

O relatório citará como precedente o caso conhecido como “massacre de Haximu”: uma chacina de 16 índios da tribo ianomâmis por garimpeiros em Roraima, em 1993. O crime é o único julgado como genocídio pela Justiça brasileira até hoje – e, no entendimento do relatório, mostra que o tipo penal não depende do número de vítimas para ser caracterizado. Segundo o texto, a conduta de Bolsonaro também se encaixa na definição do Marco para Análise de Crimes de Atrocidade, um documento editado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014.

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12. Disseminação de fake news

A difusão de notícias falsas na pandemia é um dos pontos mais longos do texto, com quase 150 páginas. O relatório acusa o grupo político do presidente Jair Bolsonaro de criar uma verdadeira organização para difundir as “fake news”, formada por sete núcleos (comando, formulação, execução, núcleo político, operação, disseminação e financiamento). 

Bolsonaro e seus três filhos com carreira política – Carlos, Eduardo e Flávio – seriam os líderes do núcleo de comando da organização. De acordo com a CPI, a organização inclui os assessores do chamado “Gabinete do Ódio”, mas é muito mais ampla. Vai desde empresários como o varejista Luciano Hang, dono das lojas Havan, até dirigentes do Ministério da Saúde, como o médico olavista Hélio Angotti Neto. O texto também relaciona sites e blogs que tiveram “intensa participação” na divulgação das notícias falsas. Endereços como Crítica Nacional, Terça Livre, Jornal da Cidade Online, Renova Mídia, Folha Política, Brasil Sem Medo e Brasil Paralelo tiveram os sigilos bancários quebrados pela CPI para saber se receberam dinheiro público, mas as informações não chegaram a tempo. O relatório pede que os 16 sites sejam investigados por órgãos de controle. Há também a imputação de que meios oficiais – como a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) e o Ministério da Saúde – foram usados para difundir “desinformação institucional”.

Carlos Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro e Flávio Bolsonaro, filhos do presidente Jair Bolsonaro. Foto: Dida Sampaio/Estadão

13. Caso Prevent Senior e planos de saúde

O relatório termina com a descrição da “macabra atuação” da Prevent Senior. Segundo o documento, a operadora de saúde e o governo federal atuaram em parceria. Bolsonaro divulgou os dados da rede como “verdade científica”. A Prevent Senior é acusada de falsificar informações para promover o kit covid, fazer seus associados de “cobaias humanas”, perseguir médicos que se recusaram a prescrever tratamentos ineficazes, ocultar mortes por covid e fraudar declarações de óbito para diminuir o número de mortes nos hospitais da rede. O documento sugere o indiciamento de 11 pessoas, dentre elas uma médica por homicídio, e dois sócios da operadora, Fernando e Eduardo Parrillo e o diretor executivo, Pedro Batista Júnior, por perigo para a vida ou saúde de outrem, omissão de notificação de doença, falsidade ideológica e crime contra a humanidade.

14. Indiciamentos

O documento sugere o indiciamento de aliados de primeira hora do presidente, além de seus filhos Flávio, Eduardo e Carlos Bolsonaro: os deputados do PSL, Carlos Jordy (RJ), Bia Kicis (DF) e Carla Zambelli (SP), o blogueiro Allan dos Santos, empresários bolsonaristas, como Luciano Hang e Otávio Fakhoury, o pastor Silas Malafaia e os assessores Filipe G. Martins e Tercio Arnaud. Todos por incitação ao crime, ao disseminarem fake news e levarem a população a adotar comportamentos inadequados. Ao presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Luiz de Brito Ribeiro, foi atribuído o crime de epidemia culposa com resultado morte. Em relação ao ex-ministro da Saúde Ricardo Barros é sugerido o indiciamento por formação de quadrilha.

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66 é o número de pedidos de indiciamento contra pessoas, além de três pedidos contra empresas

15. Propostas legislativas

O relatório traz propostas de mudanças na legislação. Um dos projetos pretende criminalizar a criação e divulgação de fake news e estabelecer direitos e deveres para o uso da internet. Outra proposta quer definir e punir o crime de extermínio, previsto no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. O parecer sugere ainda mudanças no Código Penal para endurecer penas de crimes contra a administração pública, quando praticados em situação de calamidade pública ou de emergência em saúde e propõe pensão para órfãos de vítimas da pandemia.

16 é o número de proposições legislativas que serão apresentadas