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Assédio na Assembleia: suspensão de mandato 'abre precedente inédito no Brasil', diz Isa Penna

A parlamentar do PSOL considera a decisão pelo afastamento do deputado Fernando Cury (Cidadania) por seis meses como uma "derrota" para o "setor mais machista" da Alesp

Por Cássia Miranda
Atualização:

Animada após uma noite de sono bem dormida, mas ainda com a voz cansada — reflexo dos últimos três meses e meio de batalha travada na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) —, a deputada Isa Penna (PSOL) considera o período de 113 dias entre o assédio sexual cometido contra ela, pelo deputado Fernando Cury (Cidadania), no plenário da Alesp, em 16 de dezembro, e a decisão unânime pelo afastamento do parlamentar pelo período de 180 dias, na última quinta-feira, 1, como "os piores meses" que já viveu ao longo de seus 30 anos.

Em entrevista ao Estadão, nesta sexta-feira, 2, menos de 24 horas da sentença unânime do plenário da Alesp, Isa Penna celebra o fato de a decisão abrir precedente para outras mulheres vítimas de assédio. "Eu acho que a vitória de ontem é, em primeiro lugar, um marco para as mulheres como um todo, que em seus ambientes de trabalho vão poder usar esse caso como precedente", diz.

Deputada Isa Penna (PSOL) durante sessão na Assembleia de São Paulo Foto: José Antonio Teixeira / Alesp

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Apesar de do cansaço físico e psicológico dos últimos quase quatro meses, a deputada — que indica a possibilidade de se candidatar ao Congresso Nacional — já escolheu as novas bandeiras pelas quais vai lutar. A primeira delas, será apresentar, na próxima segunda-feira, 5, junto à bancada federal do PSOL, um projeto de lei pela paridade nos conselhos de ética das casas legislativas do País. E isso não é por acaso. Foi no Conselho de Ética da Alesp que a parlamentar teve uma das derrotas mais amargas ao longo do processo. Por uma manobra dos aliados de Cury, o colegiado aprovou,  uma punição atenuada (119 dias de afastamento) ao parlamentar pela importunação sexual cometida contra Isa Penna. A pena foi revertida na sessão de quinta-feira.

O PL é, segundo ela, a primeira medida "de um pacote contra a cultura do estupro" no Brasil. "O que eu estou querendo dizer é que já há elementos para construir uma lei que criminalize o assédio no Brasil. Nesse momento, digamos, essa é a minha próxima missão". Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

Na sessão de ontem, a senhora se disse “exaurida”. Como foi esse processo de quase quatro meses?

Como eu estou, literalmente, no dia seguinte, acho que ainda tenho coisas a assimilar. Mas, acho que esses meses foram os piores da minha vida, até aqui. Porque era uma sensação de sobressalto. Foi assim nos últimos quatro meses. Em todas as reuniões eles tentaram obstar o nosso avanço. A todo momento foi muita batalha. Então, se eu tivesse me colocado na posição de me preservar totalmente, eu não teria dado o bom combate, porque eu tinha que exercer a minha voz ali. Eu tive que me impôr. A força que eu busquei foi muito nas mulheres que me cercam, nas pessoas que me amam. Mas algo me dizia que a gente ia conseguir. A mobilização das mulheres me levantou em muitos momentos. Entraram mulheres no meio do caminho em muitos momentos em que eu achava que estávamos perdendo. Aí entram as mulheres do 342 Artes, as mulheres do Vote Nelas, e aí dá um outro gás pra gente, então, teve vários momentos de subida e decida. Mas, basicamente, a sensação foi de humilhação recorrente, de exposição absoluta, de da tentativa de me fazer assinar embaixo, no papel da feminista histérica que queria destruir a vida do Fernando Cury. É difícil. Eu sou uma mulher que estudou muito a luta feminista, então eu me inspiro muito nessas mulheres. Eu conheci a Marielle Franco, por exemplo. Nada para as mulheres vei de graça, veio sem luta. Muitas mulheres morreram sem ter nem essa vitória. Eu, pelo menos, tive a chance de ver essa vitoria, que é parcial, mas tem o gosto de vitória total, porque foi fruto de muita luta. As mulheres abraçaram isso. Se o nosso mandado de segurança voltar dizendo que deveria ter sido apresentado emenda, a gente vai apresentar. Ainda podemos nos surpreender nessa luta. Esse caso ainda pode nos surpreender muito. 

Em mais de uma ocasião ao longo desses meses a senhora disse que foi “revitalizada”. O que é a revitimização e como ela torna esse processo ainda mais difícil? Pode dar exemplos?

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Tem algumas dimensões. Primeiro, porque eu tenho certeza de que o assédio mesmo, ele se estendeu. Esse caso… Eu já fui procurada por algumas instâncias que querem levar esse caso como um caso que é muito demonstrativo da violência politica institucional de gênero. A coisa de você ter de entrar e você saber… A diferença é de que é um processo político, então, tudo está sempre em disputa. Eu tive de me colocar num lugar de, eu sou a vítima, eu sou a minha própria advogada, no sentido de quem eu, como parlamentar, tenho voz. Eu tenho que tomar decisões muito importantes, eu tenho que dialogar e escutar pessoas que eu sei que fizeram parte e arquitetaram essa violência toda contra mim. Essa violência toda não foi uma tentativa contra a Isa Penna. Essa violência toda foi uma violência contra a presença das mulheres na política e nos espaços de poder. Eu não acho que fui revitimizada, acho que fui vítima de uma sequência de episódios de assédio. Aqui, estou me referindo especificamente aos deputados lá no Conselho de Ética. Em especial a figura do deputado Wellington Moura (Republicanos). Eu não sei ainda o que ele ganhou nessa história, mas nós veremos. Eu não acho que eu fui vítima de um episódio. Eu fui vítima de um episódio de assédio físico. Depois disso, fui vítima de episódios de violência psicológica, igual a Mari Ferrer naquela audiência. Eu não sou de uma criação feminista, eu aprendi sobre o feminismo e as violências contra as mulheres lá pelos 18 anos, quando eu olhei para minha vida e percebi as violências que eu já tinha passado. O feminismo nos identifica a partir de uma dor comum que a gente faz virar luta.

O que o resultado de ontem representa para a política brasileira?

Representa muito. Em primeiro lugar, para as mulheres todas, porque como a gente está vendo, o ódio que é disseminado, ele infecta a sociedade como um todo. Assim como, uma vitória feminista se dissemina pela sociedade como um todo. Eu acho que a vitória de ontem é, em primeiro lugar, um marco para as mulheres como um todo, que em seus ambientes de trabalho vão poder usar esse caso como precedente. Dois, acho que é um marco para a democracia brasileira. É o Estado, parte dele, a maior casa legislativa da América Latina reconhecendo que existe uma violência política que é de gênero, isso, por si só, é uma validação do nosso discurso pelo Estado brasileiro. É por isso que muitas mulheresem especial as que fazem política, sabem a importância disso que aconteceu. Éuma marco para dentro do Parlamento e é um para os assediadores também, que viram essa mobilização anti Cury acontecendo. É preciso que se diga: o Cury é um indivíduo que cometeu um crime e as mulheres se identificaram comigo naquela situação. Eu não quero o mal da família do Cury nem compactuo com práticas de violência ou linchamento contra a família dele, nem a ele mesmo. Acho que ele tem que pagar pelo que ele fez e se rever como homem. 

Objetivamente, do ponto de vista legal e jurídico, o que a senhora acha que deve mudar em casos como esse?

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Tem duas dimensões importantes. A primeira, do ponto de vista interno das casas legislativas. Na segunda-feira, 5, a gente vai protocolar no Congresso Nacional e em todos os parlamentos do Brasil uma proposta, uma primeira medida de um pacote contra a cultura do estupro. A primeira medida que a gente vai protocolar é pela paridade nos conselhos de ética. Isso é muito importante, a gente tem que almejar a paridade entre pessoas não-brancas e brancas, almejar a paridade entre pessoas não-cis e cis. Mas, até lá, esse seria um precedente muito importante a ser aberto.

Tem outra dimensão, que é o texto criminal. Eu sempre pensei em sair para deputada estadual, mas o quanto que eu não tenho que estar em âmbito nacional, porque a gente precisa mudar. Assim como tem a lei do feminicídio, a gente precisa ter uma lei que tipifique o assédio. A gente já tem padrões de comportamento sobre como o assédio se desenvolve no Brasil, sobre como a encoxada acontece no transporte público. Vamos tipificar a encoxada. Encoxada é crime. O que eu estou querendo dizer é que já há elementos para construir uma lei que criminalize o assédio no Brasil. Nesse momento, digamos, essa é a minha próxima missão. Mas não sozinha. O assédio sexual está previsto em lei, mas está atrelado à ideia de hierarquia. No meu caso, o assédio, legalmente falando, só valeria se o Cury fosse meu chefe. A gente precisa rever a interpretação jurídica do que é o assédio. Tem uma série de elementos que a gente precisa avaliar, tanto do ponto de vista dos regimentos políticos quanto do ponto de vista do Código Penal. Principalmente desses dois aspectos, acho que essas são as duas bandeiras que eu vou pegar na política

Como foi essa articulação para a construção do PL?

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Foi uma articulação que surgiu, principalmente, das mulheres do PSOL, mas que a gente convida todas as mulheres de todos os partidos políticos, que sabem o que é ser mulher na política, a se somarem a isso. Não importam se concordam com a gente em todo o resto que a gente defende. A gente quer que as mulheres do PSDB, como foi ontem, as mulheres do PSDB que estavam comigo, as mulheres do Novo, todas as mulheres. Queremos que elas venham conosco nesse projeto de lei. Esse PL vai ser encampado pela líder de bancada do PSOL, a Talíria Petrone (RJ), que, inclusive tem ameaça de morte, a ONU está cuidando do caso dela, mas também vai ser protocolado em todas as casas legislativas que o PSOL está. Nós convidamos todos os partidos a serem coautores e todas as autoridades a aprovarem esse projeto de lei, essas medidas que vão vir desse pacote para repensaracultura do estupro no Brasil, a violência institucional. É um convite a todas as mulheres que estiveram comigo até aqui, para a gente conquistar vitórias que sirvam ainda mais para todas as mulheres. É uma vontade minha estudar sobre como avançar nessa questão. Nos países mais avançados, onde essa questão já é mais debatida, não tem o conservadorismo tão arraigado, como é a legislação sobre assédio nesses países. Então, eu quero desenvolver todo um estudo nessa área e aprovar a revisão da lei do crime de assédio.

O episódio do assédio teve repercussão nacional. Acredita que o impacto da decisão de ontem terá a mesma proporção?

Senti imediatamente (a repercussão). Foi uma coisa de muita comoção. No fim da sessão, eu tava pensando sobre os seis meses não ser exatamente… Mas na hora em que eu vi a comoração das mulheres, e mais, eu acho que é interesse público que essa decisão precisa ser divulgada. É um dever das instituições divulgarem isso. Porque ela abre um precedente inédito na história do Brasil. Essa decisão reconhece que há violência política de gênero, que há violência institucional de gênero, que a violência machista está dentro do Estado brasileiro e isso é histórico. Essa decisão vai servir de subsídio para outras mulheres que queiram questionar essa realidade em seus locais de atuação.

Qual a mensagem que o afastamento do deputado Fernando Cury por seis meses e os processos abertos no Ministério Público e na Justiça Comum passam aos parlamentares brasileiros?

Nós não aceitaremos nenhum tipo de ameaça, assédio ou constrangimento. Vamos lutar até o fim por Justiça em cada caso. Por todas nós.

Qual foi a importância da pressão feita pela sociedade civil, principalmente pelas mulheres na revisão da pena aprovada pelo Conselho de Ética?

A pressão de cada uma dessas mulheres foi igualmente determinante à minha atuação e à atuação da minha equipe. Foi absolutamente determinante.

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A sua defesa, desde o início, foi pela cassação do deputado Fernando Cury. Ontem, a senhora disse que continuaria buscando isso. Quais os próximos passos que pretende seguir?

A bola, nesse caso, não está mais na minha mão. Os próximos passos são aguardar o Ministério Público, aguardar a conclusão da expulsão do deputado do Cidadania, aguardar o processo do mandado de segurança. Acima de tudo, a minha luta é contra esse sistema. Os próximos passos passam por dar mais organizatividade a essa rede de mulheres. Durante o meu caso, chegaram outros casos até mim de violência institucional. Agora eu vou ter tempo de estudar cada caso. A própria Mari Ferrer é alguém com quem estou em contato. A minha missão agora é dar luz a esses casos de machismo institucional de machismo proveniente do Estado brasileiro e me debruçar com carinho sobre a situação de cada uma dessas mulheres.

Acha que em seis meses já teremos um ambiente menos “horrível”, usando as suas palavras, para as mulheres na política institucional?

Eu acho que sim, porque o próximo deputado que pensar em tocar os seios de uma deputada, que pensar em encoxar uma deputada, ele vai ficar com medo. Acho que tem, sim, uma consequência direta, mas tem muito a ser conquistado. O meu caso é só a ponta do iceberg. Porque a gente está falando da violência que vem dos espaços de poder. Isso, no Brasil é absolutamente recorrente.

Daqui a seis meses, quando o deputado Fernando Cury retomar o mandato na Alesp, o que a senhora espera dele?

Eu não espero nada dele. A forma como ele agiu durante esse processo, para mim, é reveladora. Ele poderia ter tido uma postura muito diferente (ao longo do processo). 

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