Contra-almirantes narram participação do Brasil em missões de paz: 'Sem descanso'

Militares que comandaram força-tarefa marítima da Unifil, missão de paz no Líbano, relatam ganhos para a tropa e exaltam papel de projeção de força do Brasil

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Por Paulo Beraldo e Marcelo Godoy
11 min de leitura

Eduardo Augusto Wieland, Sérgio Renato Berna Salgueirinho, Carlos Alberto Santos Cruz e João Carlos Vilela Morgero têm um comum o fato de terem comandado brasileiros em ações de paz no exterior.

Os contra-almirantes Wieland e Salgueirinho foram os dois últimos brasileiros a comandar uma força de paz com tropas brasileiras no exterior: chefiaram a Unifil, no Líbano, entre 2019 e 2020.

Já Santos Cruz foi o chefe da Minustah, a força de paz no Haiti, entre 2007 e 2009. Depois chegou à força de imposição da paz na República Democrática do Congo, em 2013. E Vilela foi o comandante do contingente brasileiro na Minustah em 2005 (veja mais aqui). 

A primeira entrevista é com Sérgio Renato Berna Salgueirinho, que deve passar o comando da Unifil, a força de paz da ONU no Líbano, em janeiro. O Brasil deixou de manter um contingente na Unifil, última tropa brasileira a atuar em forças de paz das Nações Unidas. 

Qual a situação enfrentada pelos militares que compunham a Unifil?

Tanto os tripulantes da fragata Independência, que já concluiu sua participação na missão, quanto os componentes do estado-maior da força-tarefa marítima da Unifil seguem em segurança, cumprindo suas missões e satisfazendo os requisitos individuais para integrarem as Forças de Paz da Unifil.

Quais os principais fatores que desestabilizavam a região?

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A respeito da FTM-Unifil, dentre suas tarefas de vigilância marítima e as operações de interdição marítima está a de evitar a entrada de armas ilegais e material correlato no território libanês, vindos pelo mar. Para isso, os navios realizam patrulhas de forma ininterrupta na região do mar Mediterrâneo, adjacente ao território do Líbano, o que tem contribuído para a estabilidade e a paz nessa região. Não é tarefa da FTM-Unifil a identificação de grupos armados ou criminosos.

O contra-almirante Sérgio Renato Berna Salgueirinho. Foto: Marinha do Brasil

Qual o treinamento e como era a logística das forças da ONU empregadas na missão? Como foi feita a seleção do pessoal que serviu na missão?

A ONU exige para todos os militares que serão desdobrados em uma missão de paz uma cuidadosa preparação. Foram realizados cursos preparatórios, ainda no Brasil, devidamente supervisionados e homologados pela ONU. 

Quantos eram os militares brasileiros na época em que o serviu na missão? Havia integrantes da Marinha, da FAB e do Exército na missão?

Há participação de militares da Marinha do Brasil e do Exército na Unifil. De fevereiro de 2020 até os dias atuais, tivemos a presença de cerca de 220 militares da Marinha e sete militares do Exército participando, simultaneamente, da Unifil. Em 2 de dezembro, com o encerramento da participação da fragata Independência na missão, o atual contingente brasileiro na Unifil passou a ser de 21 militares da Marinha.

Como era a relação com os militares de outros países? Contingentes de quantos países faziam parte da missão? Quais as nacionalidades envolvidas?

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A Unifil possui uma força de trabalho de cerca de 10 mil militares de 45 diferentes nacionalidades, distribuídos em toda a área de operações, situada no sul do Líbano, e na área marítima de operações, que cobre uma porção marítima em frente à costa libanesa. Os militares do contingente brasileiro sempre foram muito bem recebidos e tratados pelos demais membros dos países contribuintes de tropas em um ambiente de respeito mútuo e profissionalismo. Mais especificamente na força-tarefa marítima da Unifil, contamos com a participação de militares e meios da Alemanha, Bangladesh, Grécia, Indonésia e Turquia, além do Brasil.

Como a missão contribuiu para o aperfeiçoamento e operacionalidade de nossas Forças Armadas?

A FTM-Unifil, criada em outubro de 2006, é o primeiro e único componente naval de uma missão de paz da ONU, e o Brasil foi o primeiro país não integrante da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) a ter a oportunidade de liderar esta força-tarefa.

Navio fragata Independência, que começa sua viagem de volta ao Brasil no dia 2 Foto: MARINHA DO BRASIL

Em 24 de fevereiro de 2011, o contra-almirante brasileiro Luiz Henrique Caroli assumiu o comando da FTM-Unifil e, assim, o Brasil passou a pertencer a um seleto grupo de países que liderou esta força-tarefa desde a sua criação: a Itália, a Alemanha, a França e a Bélgica. Desde o início da participação brasileira na missão, seis navios da Marinha foram enviados em 17 comissões distintas para comporem a FTM-Unifil, envolvendo aproximadamente 3.600 militares.

É possível destacar que a longeva participação do Brasil na liderança deste comando de setor da Unifil permitiu à FTM-Unifil alcançar uma desejável estabilidade e continuidade nos seus processos internos, tal como acontece na liderança dos demais setores terrestres da missão. Ao longo desses quase dez anos, a Marinha também ganhou larga experiência em operar continuamente em uma missão real, em um ambiente multinacional, distante 5.500 milhas náuticas do seu território, e em uma região com um ambiente operacional e geoestratégico de alta complexidade. 

De que forma a presença na missão da ONU era um fator de projeção do poder nacional?

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A presença do Brasil na Unifil esteve alinhada à Estratégia Nacional de Defesa, sendo possível ampliar a sua influência e visibilidade no contexto mundial das nações, ao reafirmar o compromisso do Brasil com a defesa da paz entre os povos. Permitiu à Marinha, ainda, demonstrar suas capacidades profissionais, de liderança e de coordenação perante os demais contingentes de outras nações e, também, incorporar novos conhecimentos operacionais e táticos.

Destacam-se os desafios: logístico, de manter um navio operando intensiva e continuamente por mais de oito meses, a cerca de 5.500 milhas náuticas de distância de sua sede; a experiência operativa proporcionada pela atuação em uma força multinacional; a visibilidade e a projeção da imagem do Brasil no cenário internacional; o prestígio e o respeito pelo exercício do comando da FTM-Unifil; a possibilidade de contribuição direta à manutenção da paz mundial, a contribuição à segurança e ao desenvolvimento de um país amigo, o Líbano; e a contribuição direta com a capacitação do pessoal da Marinha do Líbano para o desempenho das atividades voltadas à segurança marítima de seu mar territorial. 

Quais os principais desafios enfrentados pela missão em que o senhor esteve presente? Como era feito o controle de armas ?

Muitos foram os desafios enfrentados em 2020, dentre eles os efeitos e as interferências provocados pela pandemia da covid-19, tanto nas forças da Unifil, quanto nas forças da Marinha do Líbano; os efeitos no cumprimento da missão provocados pela atual crise econômica pela qual o Líbano atravessa; os efeitos do incidente da explosão no porto de Beirute; e a adequada preparação para a passagem do comando da Força-Tarefa Marítima da Unifil. Esses desafios, ao mesmo tempo em que exigiram ampla análise das situações impostas, para o correto processo de tomada de decisões e de assessoria ao comando e às demais lideranças da Unifil, foram adequadamente superados com o competente e dedicado trabalho desenvolvido pelo Estado-Maior multinacional da FTM-Unifil.

Confira, agora, a entrevista com o contra-almirante Eduardo Wieland

O contra-almirante Eduardo Wieland atuou no Haiti e comandou a força-tarefa Marítima da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (FTM-UNIFIL). Um brasileiro comandou a força no país asiático por nove anos, de 2011 a 2020. 

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O contra-almirante Eduardo Wieland. Foto: Marinha do Brasil

Qual o impacto da missão no Líbano para a formação dos marinheiros? 

O grande ganho profissional é oriundo da atuação do navio em uma Força Multinacional regida por normas-procedimentos específicos da ONU em uma região de cultura riquíssima, com características físicas diferentes das encontradas no Brasil. Os militares que compõem a tripulação dos navios são empregados em uma operação real, em uma sensível região do globo terrestre, onde diversas culturas se superpõem e que empresta uma alta visibilidade aos participantes da Missão de Paz.

De que forma essa participação contribui para o aprimoramento de procedimentos da Marinha?

Temos a oportunidade de entrar em contato com militares das mais diversas partes do globo, trocarmos experiências, aperfeiçoarmos procedimentos e forjarmos laços de amizade. São ganhos intangíveis no presente, mas que no futuro podem representar um valor imensurável. Por cerca de oito meses, passamos também a viver a “vida de bordo”, nos familiarizando com os detalhes do navio, as atividades técnicas, de manutenção e operacionais. 

O militar, ao retornar de uma missão desse porte, ganha um inestimável cabedal de conhecimento técnico-profissional que refletirá positivamente na Marinha do Brasil. Os ganhos operacionais são naturalmente elevados. Exercitamos aqui a interoperabilidade entre Marinhas, a comunicação em língua estrangeira, além de executarmos uma operação de interdição marítima. As dificuldades e oportunidades aqui identificadas servem de subsídios para o aprimoramento de nossa doutrina no Brasil. 

E a importância da missão para o treinamento da esquadra brasileira?

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A FTM cumpre diversas tarefas, entre as quais conduzir operações de interdição marítima, treinar a Marinha do Líbano, monitorar a presença naval externa (navios, submarinos e aeronaves) e estar pronta a realizar operações de socorro em coordenação com a Marinha libanesa.

Um dos chamados pilares da missão é a condução de operações de interdição marítima, que podem ser definidas como o conjunto de esforços para monitorar, interrogar, interceptar e, se necessário, abordar tráfego marítimo em uma área definida, para verificar, redirecionar, apreender suas cargas ou apresar embarcações, na aplicação de sanções, como aquelas em apoio às resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e/ou para prevenir o transporte de itens restritos.

Realizar essa atividade em uma área de operações distantes e com características peculiares, sob a égide da ONU, é o grande aprendizado para a esquadra e para a Marinha do Brasil. 

Contra-almirante Eduardo Wieland

Quais os impactos dessas experiências na vida cotidiana? 

A distância de nossos laços familiares, de nossa casa e de nossos hábitos diários, atrelada a uma rotina de trabalho diuturna, acabam por forjar a maturidade psicológica do militar e até de sua família, fundamental para habilitá-lo a qualquer tipo de sacrifício que a nação poderá lhe impor. 

Como é a rotina dos marinheiros na embarcação?

Para a execução da Missão Marítima no Líbano, temos a meta de manter ao menos três navios no Mar do Líbano continuamente, durante todo o ano. Para tal, nossos marinheiros são submetidos a uma escala de patrulha com paradas logísticas e eventualmente de descanso. A permanência no mar é, em média, 60% do período. No porto, cumpre-se ainda as atividades de segurança do navio, logística, manutenção e limpeza e organização. É uma intensa atividade de trabalho. O navio também atua como um verdadeiro ‘embaixador’ em Beirute, mostrando a bandeira e sendo visitado por autoridades, convidados e escolas. Todas essas atividades exigem preparação e esmero acurado para bem representar o país no exterior. 

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Costumamos falar que não existe dia de descanso semanal específico. Chamamos de ‘sábado-feira’, ‘domingo-feira’, nos referindo aos dias que normalmente estaríamos em descanso, mas que normalmente cumprimos as atividades previstas. O descanso na ONU só é garantido nos períodos de saída regulamentar. Quando possível, buscamos realizar atividades desportivas e culturais para a tripulação, fundamentais para redução da fadiga do nosso pessoal.

Pode-se dizer que a Unifil é a missão mais importante no exterior cumprida pela Marinha desde a 2ª Guerra Mundial?

Ao todo, o Brasil já participou de aproximadamente 50 missões das Nações Unidas, tendo enviado cerca de 50 mil militares ao exterior. Na maioria delas a Marinha se fez representar com a atuação de mantenedores da paz do Corpo de Fuzileiros Navais. A participação da Marinha na FTM-UNIFIL, a primeira e até o momento única força naval desse tipo sob a égide das Nações Unidas, é sem dúvida, de elevada importância.

Porém, ainda é cedo para se afirmar ser a mais importante missão no exterior cumprida pela Marinha desde a 2ª Guerra Mundial. Eu não posso dizer isso. Mas posso dar alguns indicadores de importância.

Quais seriam esses indicadores? 

Desde 2011, um almirante brasileiro está no comando da FTM. Há mais de oito anos, a Marinha do Brasil mantém um navio e uma aeronave orgânica na costa libanesa com o objetivo de impedir a entrada ilegal de armas ilegais e materiais correlatos naquele país, além de contribuir para o treinamento da Marinha libanesa, de modo que possa conduzir suas atribuições de forma autônoma. É inegável que o cumprimento dessa missão exige um esforço logístico e de aprestamento elevado.

Outro fator é a própria região em que se insere. Teatro de diversas disputas no passado, é hoje um ponto de contato de diferentes civilizações e religiões e é por onde circula significativo volume de comércio, dentre os quais, o sensível comércio de óleo e gás, e pessoas. Conseguir manter certo grau de estabilidade no Líbano melhora a qualidade de vida de seus habitantes e também garante certo grau de estabilidade regional, que traz reflexo positivo para toda humanidade, inclusive no cotidiano brasileiro, promovendo o papel dos militares entre a sociedade e no atendimento a nossos princípios constitucionais da “defesa da paz”, a “solução  pacífica dos conflitos” e a “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”, conforme estabelecido no art. 4º da Carta Magna. 

Quantos dias de patrulhamento no mar e quantos dias em terra passam os militares na missão?

Em média, durante os seis meses, o navio fica cerca de 120 dias no mar. Quando atracado, os militares cumprem uma escala de serviço, além de rotinas com expediente e manutenção. Como uma ideia geral, os militares saem de bordo uma média de sete dias por mês, quando há segurança e estabilidade em terra para o licenciamento.

Qual o tempo de permanência de cada militar na missão?

O militar permanece na missão durante seis meses, podendo, em alguns casos e a pedido pessoal, estender este período por mais seis meses. Se considerar o período de deslocamento do navio para a área de operações e seu retorno, o período de afastamento da tripulação chega a oito meses.

Quantas abordagens ou fiscalização de embarcações foram feitas pela Unifil nos últimos 5 anos?

Na fase de entendimentos da missão, o governo libanês se reservou o direito de sua soberania, ficando responsável pelas inspeções dos navios. As inspeções podem ser realizadas com os navios no mar ou atracados nos portos libaneses. Os navios da MTF ficam disponíveis para a abordagem quando solicitados pelo governo libanês. Nossa tarefa principal seria identificar comportamentos incomuns, ou aproximações inesperadas de navios e auxiliar o governo sobre qual navio inspecionar.

Evidentemente que a presença de uma força marítima continuamente monitorando a área marítima interrogando todas as embarcações que por aqui passam, confirmando as que se aproximam com os controles previamente informados, já garante por si só uma estabilidade na área. Uma tentativa de atividade ilícita ficaria exposta ao nosso controle.

Nos últimos cinco anos, foram interrogados mais de 35.000 navios e foram feitas mais de 10.000 inspeções pela Marinha libanesa. A última grande apreensão de armamento foi feita em 2012, quando foi descoberto um container com 150 toneladas de armas com destinação para rebeldes na Síria. Em 2016, o contingente brasileiro também contribui com o governo libanês na imposição da lei nas suas águas jurisdicionais, como evidenciado pelo episódio de apreensão de drogas ilícitas, com a participação da Fragata Independência.

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