Há 130 anos, um grupo de idealistas lançou um manifesto defendendo a República como forma de governo. Pretendia-se combater o privilégio e defender a liberdade em todas as suas manifestações.
Dizia o documento: “O privilégio em todas as suas relações com a sociedade - tal é, em síntese, a fórmula social e política do nosso País - privilégio de religião, privilégio de raça, privilégio de sabedoria, privilégio de posição, isto é todas as distinções arbitrárias e odiosas que criam no seio da sociedade civil e política a monstruosa superioridade de um sobre todos ou de alguns sobre muitos.”
O documento prosseguia afirmando que a esse desequilíbrio devia o País a sua decadência moral e sua desorganização administrativa, além das perturbações econômicas.
É impossível não pensar no manifesto republicano quando se lê o projeto de reforma da previdência dos militares, que ameaça se transformar em nova dor de cabeça para o governo de Jair Bolsonaro. Os críticos dentro e fora das Forças Armadas veem nele uma “pauta-bomba” feita pelo presidente.
O projeto estabelece compensações financeiras aos militares pela reforma da Previdência que não foram dadas a nenhuma categoria profissional. Os aumentos de vencimentos podem chegar a até 50% no topo das carreiras. Além de garantir o salário integral na aposentadoria (reserva e reforma) e a paridade salarial com a ativa.
O projeto inclui agora as PMs estaduais, criando gastos que os governadores pensavam reduzir com a reforma geral da Previdência. Exclui-se dos sacrifícios feitos por todos uma categoria que é das mais próximas do capitão que ocupa o Planalto. E esses gastos futuros devem ser pagos por governos enforcados financeiramente.
O projeto ainda tem no mínimo mais 3 pontos polêmicos. Um coronel do Exército que pediu anonimato - ele teme a reação dos colegas - os enumerou. Trata-se, primeiro, de se ampliar o fosso dos vencimentos entre a base - soldados, sargentos e tenentes - e a cúpula: os coronéis e generais. Nisso, o coronel segue o que o general Synésio Scofano Fernandes, especialista em finanças do Exército, já havia dito para esta coluna.
O leitor viu aqui que, para dissimular o crescimento da alíquota de contribuição previdenciária e do tempo de serviço, o projeto cria o adicional de disponibilidade dos militares e aumenta o adicional de habilitação (cursos feitos durante a carreira). O primeiro será proporcional ao soldo. Ele é de 41% para generais, brigadeiros e almirantes (soldo de R$ 13.421,00) e 6% para cabos (R$ 2.627,00) e segundos-tenentes (R$ 7.490,00). Os porcentuais aumentam conforme se sobe na hierarquia. E passam a ser cumulativos para os cursos realizados.
Em seguida, outra questão apontada pelo coronel, é a gratificação de representação para oficiais. O que é estranho nessa história é que ela será dada só aos generais de forma vitalícia.
Ou seja, mesmo aqueles que se aposentem e, portanto, não representem mais suas unidades e comandos, continuarão a receber verba de representação. Seu valor é de 10% do soldo. “No frigir dos avos, isso redundará num aumento do salário bruto da ordem de 75% para os generais, que significa, abatidos os descontos, num aumento do salário líquido da ordem de 50%”, afirma o coronel.
Para ele, rever a estrutura salarial dos militares das Forças Armadas é necessário e é desejável ganhar mais. “Mas a atual proposta é inoportuna, mal elaborada e visa, antes de tudo, à cristalização perigosa do apoio político das Forças Armadas - principalmente da cúpula - ao bolsonarismo.”
O Ministério da Defesa está se reunindo com as bancadas dos partidos. Nesta terça-feira, dia 15, por exemplo, vai receber a do PT. Quer convencer os partidos a aprovar o projeto. O PT já colheu as 54 assinaturas de sua bancada para levar o projeto de lei da Comissão Especial - o governo queria aprová-lo em caráter terminativo, na comissão - para o plenário a fim de ser apreciado por todos os deputados (são necessárias 51 assinaturas para tanto).
A esquerda quer discutir os privilégios dos generais e os salários das praças. A cúpula militar vê nisso manobra para dividir as Forças Armadas. Mas e o que dizem os demais brasileiros? Não se nega que militares e policiais precisem de regras diferenciadas para a aposentadoria em razão das especificidades das profissões. Mas será que a população apoia esses benefícios, em momento de sacrifícios, por mais que sejam justas algumas das reivindicações dos militares?
Enquanto funcionários públicos e da iniciativa privada terão como teto de suas aposentadorias futuras R$ 5,8 mil, como manter a integralidade para militares com oficiais ganhando até R$ 30 mil? De um lado se congela salários e do outro se reajusta. PMs e militares têm colégios militares para os filhos e sistema de saúde próprios. Contam o tempo de estudo na academia para fins de aposentadoria - nenhum civil conta a faculdade para tanto. A oposição teme que, ao se manifestar contra o privilégio de uns, seja acusada de hipocrisia por ter sido contra a reforma da previdência de todos.
O governo diz que a conta fecha, que o projeto é superavitário. Essa é versão econômica da frase "não é ilegal, mas é imoral". A contabilidade da Defesa inclui a redução de 10% do efetivo das Forças Armadas. Teremos menos militares, poderemos pagar mais. Mas e a Venezuela e outros riscos, como a proteção da Amazônia, com os quais o bolsonarismo alerta a sociedade todos os dias? Eles não levariam ao contrário, à necessidade de reforço de efetivos? Ou os tais riscos não são para valer?
O leitor viu aqui ainda que outra parte do cálculo do superávit da “reforma” se deve ao fato de a Defesa ter incluído na previsão de receitas o quanto o governo arrecadaria a mais com o Imposto de Renda descontado dos salários reajustados. Mas e se a reforma tributária diminuir as alíquotas do Imposto de Renda? Os militares vão continuar com as atuais alíquotas?
Ao mesmo tempo em que a Defesa discute reajuste de salário com os partidos, projetos importantes para o País patinam, como a construção de Corvetas. Cabe agora ao Congresso enfrentar as distorções e os riscos embutidos na pauta-bomba que Bolsonaro criou. Há 130 anos, os republicanos denunciavam os privilégios “que ameaçam devorar o futuro depois de haverem arruinado o presente”.
O avanço do corporativismo é um fantasma que corrói a legitimidade dos Poderes ontem e hoje. O manifesto de 1870 diz sobre os defensores dos privilégios: "Cada vitória dos princípios democráticos se lhes afigura como usurpações criminosas". Eis outra lição muito atual dos Pais da República.