- No artigo anterior mencionou-se a distopia do processo de execução penal no Brasil.
- O art. 38 do Código Penal determina:
Direitos do preso
Art. 38 - O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral[1].
- A redação desse artigo é do ano de 1984[2], quando a Parte Geral, original, do Código Penal [CP] de 1940 foi modificada. O preceito, portanto, tem quase quarenta anos -- quarenta anos!
- O Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, estabelece, art. 1º, caput, que, Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada.
- Em português claro, a regra do art. 38, CP, vigora -- ou deveria estar em pleno vigor -- desde antes do advento da Constituição federal de 1988 [CF]. Não há, por conseguinte, qualquer justificativa relevante para a não aplicação dessa legislação penal no cotidiano forense.
- É preciso, assim, modificar, repita-se, o faz de conta hediondo da execução penal no Brasil.
- O restabelecimento dos Direitos Humanos, nesse campo, passa -- insista-se -- pela correta aplicação da Constituição federal, do Direito Internacional dos Diretos Humanos, da legislação penal, processual penal e de execução penal. Nesse sentido, por exemplo, o desrespeito, pelos tribunais estaduais e federais, ao art. 38, CP, justifica e autoriza a interposição, para o Superior Tribunal de Justiça -- sem prejuízo, é claro, do uso do habeas corpus e de outros meios processuais disponíveis, incidentais ou não -- do recurso especial[3], com base na alínea a, do art. 105, III, CF:
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência.
- É nessa linha de entendimento que o penalista tem de trabalhar árdua e tecnicamente. Essa tecla -- que, a partir do uso das informações fornecidas pela sociologia, pela criminologia, pela psicologia, pela história, promove e resguarda a dignidade humana -- tem de ser batida diuturnamente, pelo advogado criminal. [É interessante lembrar que quase ninguém fala disso e pouco se publica a esse respeito!? Malgrado a realidade nua, crua, macabra e patética, já imposta/consolidada, há muito tempo -- e à vista de todos. Willful Blindness Teory[4]???].
8.1. Se o tribunal local deixar de acionar regra do art. 38, CP, no caso concreto, caberá, então, recurso especial, para o Superior Tribunal de Justiça. Por negativa de vigência desse dispositivo legal -- do art. 38, CP. Consideradas, no ponto, inclusive, as Regras de Mandela[5]. No Supremo Tribunal Federal -- STF -- mudando o que tem de ser mudado:
Quando se aplica um dispositivo da Constituição à hipótese em que ele não deve ter incidência, viola-se esse dispositivo. A ofensa à Constituição ocorre não apenas quando ela não é aplicada ao caso concreto, mas também, quando a norma é indevidamente aplicada[6].
- O Estado Democrático de Direito[7] -- fundado no postulado da racionalidade -- tem como fundamento -- impregnado de centralidade[8] -- a dignidade humana. Dignidade humana absolutamente esmagada pelos estabelecimentos penais -- cadeias públicas, penitenciárias[9].
- O CP, ao dizer que o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, determina que, à pessoa, privada da liberdade, assiste o direito de usufruir de todos os demais direitos não afetados, não abalados, não abrangidos, pela prisão. Ou seja, e exemplificativamente, os direitos, sociais, à educação, à saúde, à alimentação de qualidade, à higiene pessoal, ao vestuário próprio e roupas de cama, ao alojamento em sela individual[10], padrão Mandela[11], dentre outros. Nesse sentido:
Acomodações
Regra 13
Todas os ambientes de uso dos presos e, em particular, todos os quartos, celas e dormitórios, devem satisfazer as exigências de higiene e saúde, levando-se em conta as condições climáticas e, particularmente, o conteúdo volumétrico de ar, o espaço mínimo, a iluminação, o aquecimento e a ventilação.
- A Lei tem de ser cumprida!
- Há instrumentos jurídicos para o penalista pedir ao Estado-Juiz a correta execução da lei, em ordem a extirpar a tortura:
Art. 66. Compete ao Juiz da execução:
III - decidir sobre:
f) incidentes da execução[12].
- O aparato penal -- ou poder punitivo formal, aí incluída a polícia penal[13] -- do Estado tem dar o exemplo de respeito irrestrito e incondicional aos Direitos Humanos. Presente o postulado da superioridade ética do Estado[14]. Sob pena de responder perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos por violação dos Direitos Humanos. Tendo em conta a Convenção Americana sobre Direitos Humanos -- Pacto de São José da Costa Rica -- promulgada pelo Decreto 678, de 6 de novembro de 1992:
ARTIGO 63
- Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegido nesta Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que sejam reparadas as consequências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada.
- Em casos de extrema gravidade e urgência, e quando se fizer necessário evitar danos irreparáveis às pessoas, a Corte, nos assuntos de que estiver conhecendo, poderá tomar as medidas provisórias que considerar pertinente. Se tratar de assuntos que ainda não estiverem submetidos ao seu conhecimento, poderá atuar a pedido da Comissão.
*Alexandre Langaro, advogado criminal. Autor de livros e artigos jurídicos. Estudou o NY Criminal Procedure Law em Nova Iorque
[1][Grifos aditados].
[2][Lei 7.209, de 11 de julho de 1984.
Art 5º - Esta lei entra em vigor seis meses após a data de sua publicação].
[3][Alexandre Langaro, Recurso Especial Letras A e C Passo a Passo, Editora Thomson Reuters, 2006].
[4][Teoria da Cegueira Intencional (ou Deliberada) em tradução livre].
[5][Alexandre Langaro (https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/)].
[6][RE 141298-4].
[7][Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (... Constituição federal)].
[8][Ministro Celso de Mello
A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS CUSTOS DOS DIREITOS: IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O INJUSTO INADIMPLEMENTO DE DEVERES ESTATAIS DE PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO PODER PÚBLICO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. (RE 956475 - o texto original está grifado e sublinhado - http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE956475RJDeciso.pdf)].
[9][https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/10/mutirao_carcerario.pdf].
[10][Alexandre Langaro (https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/prisao-somente-em-cela-individual/)].
[11][https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/a9426e51735a4d0d8501f06a4ba8b4de.pdf].
[12][Lei de Execução Penal 7.210/1984].
[13][Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
- 5ºA. Às polícias penais, vinculadas ao órgão administrador do sistema penal da unidade federativa a que pertencem, cabe a segurança dos estabelecimentos penais (Constituição federal)].
[14][Conforme Eugenio Raul Zaffaroni, Lineamientos de derecho penal, 2020, Editorial Ediar].