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'Apesar da proliferação de defensores da ditadura, (ainda) vivemos um sistema democrático', diz procurador ao pedir arquivamento de inquérito da PF contra advogado que criticou Bolsonaro

Em parecer enviado ao juízo da 12ª Vara Federal do Distrito Federal, João Gabriel Morais de Queiroz avalia que não há indicativo de crime a ser investigado, sob pena de constrangimento ilegal

Foto do author Rayssa Motta
Foto do author Fausto Macedo
Por Rayssa Motta e Fausto Macedo
Atualização:

Na contramão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que determinou a abertura de um inquérito para investigar o advogado Marcelo Feller por críticas dirigidas ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no quadro 'O Grande Debate', da emissora CNN, a Procuradoria da República no Distrito Federal se manifestou pelo arquivamento do caso.

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Em parecer enviado ao juízo da 12ª Vara Federal do Distrito Federal nesta quinta-feira, 21, o procurador João Gabriel Morais de Queiroz avalia que não há indicativo de crime a ser investigado, sob pena de constrangimento ilegal.

Para o advogado Alberto Zacharias Toron, que defende Marcelo Feller no caso, a manifestação reforça e 'independência funcional' do Ministério Público Federal e 'sepulta a opressão pela via da repressão policial'.

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"Apesar dos arroubos antidemocráticos e da proliferação de defensores da ditadura observada nesses últimos anos, (ainda) vivemos, no Brasil, um sistema democrático de direito", escreve procurador. Foto: Reprodução

O inquérito foi aberto em agosto por ordem do próprio ministro da Justiça, André Mendonça, que usou como fundamento jurídico a Lei de Segurança Nacional (LSN), sancionada durante a ditadura militar para listar crimes que afetem a ordem política e social - incluindo aqueles cometidos contra a democracia, a soberania nacional, as instituições e a pessoa do presidente da República. Desde o início da pandemia, o dispositivo foi encampado pelo governo em pelo menos quatro outras ocasiões, a maioria contra profissionais da imprensa.

No caso em questão, o artigo citado é o 26, que prevê como crime 'caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação'. A pena é de um a quatro anos de prisão.

Na manifestação, a Procuradoria observa que a LSN não pode ser usada para 'constranger ou perseguir' opositores políticos, por mais 'ásperas' que sejam suas críticas. "Apesar dos arroubos antidemocráticos e da proliferação de defensores da ditadura observada nesses últimos anos, (ainda) vivemos, no Brasil, um sistema democrático de direito e, portanto, é com base nesse contexto democrático que a LSN deve ser interpretada e aplicada", pontua o procurador.

Trecho da manifestação assinada pelo João Gabriel Morais de Queiroz. Foto: Reprodução

No documento, Queiroz afirma ainda que o uso do dispositivo deve ser reservado a 'casos extremos' em que houver propósito de atentar contra a segurança do Estado e potencialidade de efetivamente cumprir esse objetivo. O procurador aproveitou para fazer uma defesa da liberdade de manifestação.

"É sempre bom relembrar que num Estado Democrático de Direito a liberdade de expressão é um direito fundamental e, dessa forma, deve ser assegurado o seu exercício ainda que vá de encontro aos interesses dos governantes de ocasião, não podendo ser tolerado o uso da força policial e, em última instância do direito penal, para coibir manifestações pacíficas e exercidas dentro da lei tão somente por conter críticas a autoridades públicas", escreveu.

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Entenda o caso

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O advogado criminalista Marcelo Feller está sendo investigado por declarações feitas durante uma das edições do quadro 'O Grande Debate', da emissora CNN, por onde teve uma breve passagem. A atração reúne dois debatedores para defender posições contrárias sobre um tema previamente definido pela produção do programa. No dia 13 de julho, o assunto escolhido foi a atuação do governo federal na pandemia da covid-19 e o impacto dela sobre a imagem das Forças Armadas.

O tema foi definido na esteira da fala do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, de que Exército está se associando a um 'genocídio', em referência à presença de militares no Ministério da Saúde durante a crise sanitária provocada pelo novo coronavírus. O ministro comentava a ausência de um titular na pasta, então comandada interinamente pelo general Eduardo Pazuello desde a queda do médico Nelson Teich mais de 50 dias antes.

Na ocasião, o advogado citou o estudo Mais do que palavras: discurso de líderes e comportamento de risco durante a pandemia, desenvolvido em parceria por pesquisadores da Universidade de Cambridge e da Fundação Getúlio Vargas. A pesquisa concluiu que atos e discursos do presidente Jair Bolsonaro contra o isolamento social como estratégia de combate à pandemia podem estar por trás de pelo menos 10% dos casos e mesmo de mortes pela covid-19 registrados no Brasil.

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Perfil do advogado Marcelo Feller elaborado pela Divisão de Contrainteligência Policial. Foto: Reprodução

Durante o debate, o criminalista usou termos como 'genocida, politicamente falando', 'criminoso' e 'omisso' para se referir ao presidente. À reportagem do Estadão, Feller explicou que a menção a genocídio foi feita sob uma perspectiva político-social e que vê o inquérito como uma tentativa de silenciamento.

"Eu fui instado ao debate público, jornalístico, e consignei o estudo. Expliquei como, ao meu modo de ver, pelo menos naquele momento, era um erro juridicamente se falar em genocídio. Mas que a palavra genocídio não pode só ser vista sob uma perspectiva jurídica. Tem uma construção político-social em torno da palavra. E aí, o que eu disse, e ainda acredito, é que política, antropológica e socialmente falando, baseado neste estudo, isso é um genocídio", disse.

André Mendonça é o segundo indicado do presidente Jair Bolsonaro para o STF. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Com a repercussão do caso, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, e o Grupo Prerrogativas, que reúne cerca de 400 juristas e entidades representativas do Direito, saíram em defesa do advogado. Enquanto Santa Cruz classificou a iniciativa como uma tentativa de 'intimidar', 'criminalizar' e 'tentar calar' as críticas sobre a condução da pandemia da covid-19, o coletivo criticou a atuação 'obscurantista' do ministro André Mendonça, a quem chamaram de 'cão de guarda do Presidente da República'.

COM A PALAVRA, O CRIMINALISTA ALBERTO ZACHARIAS TORON, QUE REPRESENTA MARCELO FELLER

"O MPF revela uma independência funcional que resgata os valores mais importantes da nossa democracia e sepulta a opressão pela via da repressão policial".

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