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Farmacêutica que apontou falta de evidências para uso da ivermectina contra covid-19 é fabricante original do remédio

Texto viral afirma que 'verdadeira fabricante' do medicamento desmentiu nota da empresa Merck, o que não é verdade

Foto do author Samuel Lima
Por Samuel Lima
Atualização:

Um texto que viralizou nas redes sociais distorce informações sobre duas empresas farmacêuticas, com o objetivo de defender o uso da ivermectina contra a covid-19 -- mesmo sem comprovação científica de que o remédio funcione contra a doença. A peça de desinformação desqualifica uma análise divulgada em fevereiro pela Merck, criadora do vermífugo na década de 1970, que disse não haver dados que sustentem a adoção da ivermectina no combate ao novo coronavírus. Um artigo do site "Crítica Nacional" engana os internautas ao afirmar que a "verdadeira fabricante" do medicamento desmentiu a Merck.

Site faz alegações enganosas sobre fabricante original da ivermectina que declarou não existir embasamento científico para uso contra a covid-19. Foto: Reprodução / Arte: Estadão

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O texto omite que a farmacêutica Merck (conhecida como MSD fora dos Estados Unidos e do Canadá) foi a responsável pelo desenvolvimento da droga e que comercializa a ivermectina até hoje no exterior, com o nome comercial de Stromectol. Além disso, a declaração da empresa de que não existe base científica para a recomendação do vermífugo contra a covid-19 está em linha com as orientações das principais autoridades mundiais de saúde pública, para as quais a doença causada pelo novo coronavírus não tem cura conhecida até o momento. O comunicado foi divulgado em 5 de fevereiro e noticiado por vários dos principais veículos de imprensa nacionais e internacionais.

Também no início de fevereiro, a fábrica brasileira Vitamedic divulgou um comunicado em que defendia a ivermectina como uma alternativa para "tratamento precoce" da covid-19. Esse posicionamento faz propaganda de um protocolo incentivado pelo presidente Jair Bolsonaro, que não tem comprovação científica e é repudiado por entidades médicas. A empresa de Anápolis, em Goiás, é uma das cinco a vender o medicamento no mercado nacional, de acordo com o bulário eletrônico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Atualmente, a página da fabricante onde foi publicada a nota sobre ivermectina está desativada. O Estadão Verifica procurou a empresa para comentar o assunto, mas não obteve resposta.

O texto do "Crítica Nacional" ainda faz outra alegação enganosa, a de que a Merck estaria desenvolvendo um medicamento "que pretende substituir a ivermectina". Na realidade, a companhia está testando duas drogas experimentais para tratamento da covid-19, chamadas de MK-7110 e MK-4482 (molnupiravir). Nenhuma delas é um vermífugo. A ivermectina não foi aprovada pelos principais órgãos de referência em saúde como opção de tratamento contra o novo coronavírus.

Merck criou a ivermectina na década de 1970 e continua no mercado

O Estadão Verifica checou as informações sobre a origem e a fabricação da ivermectina em dois artigos. O primeiro foi publicado pela American Chemical Society em sua página oficial, e o segundo por cientistas do Instituto Kitasato de Tóquio no periódico Proceedings of the Japan Academy.

De acordo com essas fontes, o desenvolvimento da ivermectina começou com o pesquisador japonês Satoshi ?mura, que firmou uma parceria com laboratórios da Merck, ainda na década de 1970, para coletar e enviar amostras de compostos medicinais promissores. Após inúmeros testes, os cientistas obtiveram um antiparasitário eficiente a partir de uma substância chamada avermectina, produzida por uma bactéria presente no solo da cidade japonesa de Kawana.

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A ivermectina entrou no mercado em 1981, destinada ao uso veterinário. Mais tarde, a Merck testou o remédio em humanos, em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS), e obteve a aprovação em 1987. A patente da farmacêutica sobre a ivermectina expirou em 1996, permitindo a outras indústrias comercializarem produtos com a fórmula, com mostra outro artigo divulgado por pesquisadores da James Cook University, da Austrália.

Apesar de não contar mais com a exclusividade no mercado, a Merck continua comercializando a ivermectina no exterior, com o nome comercial de Stromectol. A informação é confirmada por meio da lista de produtos na página oficial da empresa e de registros do Food And Drug Administration (FDA), agência sanitária que regula o mercado de medicamentos dos Estados Unidos.

Ivermectina não teve eficácia comprovada contra a covid-19

A ivermectina é um medicamento usado para tratar infestações de parasitas como piolho e sarna. Como o blog explicou em outras checagens, o fármaco entrou no panorama da pandemia depois que uma pesquisa da Universidade Monash, da Austrália, identificou que uma dose acima do recomendável do medicamento eliminou o novo coronavírus em uma cultura de células -- ou seja, em testes de laboratório. Os próprios pesquisadores, no entanto, dizem que o remédio não pode ser usado para tratamento da covid-19 até que testes clínicos comprovem a sua eficácia mediante dosagens seguras em humanos.

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As principais autoridades mundiais de saúde continuam ressaltando que não existe tratamento comprovadamente eficaz contra a covid-19. A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS) não recomendam o uso de ivermectina para propósitos diferentes daqueles para os quais seu uso está autorizado. De acordo com os organismos internacionais, a revisão das evidências disponíveis até agora "identificou incerteza nos benefícios e danos potenciais" do medicamento.

A FDA, órgão de vigilância sanitária dos Estados Unidos, esclarece que a ivermectina não foi aprovada para prevenção e tratamento da covid-19 nos Estados Unidos e que as pessoas "não devem tomar qualquer remédio contra a doença a não ser que tenha sido prescrito por um médico e adquirido por fonte legítima". A atualização mais recente da Anvisa sobre o assunto também aponta que "não existem estudos conclusivos que comprovem o uso desse medicamento para o tratamento da covid-19, bem como não existem estudos que refutem esse uso". 

Entidades médicas brasileiras repudiaram o suposto "tratamento precoce" do governo federal contra o novo coronavírus, que envolve a ivermectina e outros remédios sem eficácia comprovada, como a cloroquina. Em nota conjunta, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Associação Médica Brasileira (AMB) afirmaram que as melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação serve para prevenir ou tratar a doença até o momento. As entidades recomendam o uso de máscara e distanciamento social como forma de evitar o contágio e reforçam que as vacinas têm o potencial de evitar infecções e quadros graves da doença.

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Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.

Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook  é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas:  apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.

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