Fala da OMS sobre transmissão por assintomáticos é distorcida nas redes

Postagens enganam ao dizer que órgão internacional teria divulgado que ‘assintomáticos não transmitem a doença’, o que não é verdade

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Por Pedro Prata e Samuel Lima
Atualização:

As declarações da diretora técnica da Organização Mundial da Saúde (OMS), Maria Van Kerkhove, sobre a transmissão do novo coronavírus por indivíduos assintomáticos estão sendo distorcidas nas redes para criticar as medidas de isolamento social contra a covid-19 no Brasil. Postagens com grande alcance no Facebook alegam que a entidade teria divulgado que "assintomáticos não transmitem a doença" e que "o isolamento total sempre foi desnecessário", o que não é verdade.

Posts afirmam que OMS teria divulgado que 'assintomáticos não transmitem' o novo coronavírus. Foto: Reprodução / Arte Estadão

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Na realidade, o que a porta-voz da OMS disse, nesta segunda-feira, 8, durante entrevista a jornalistas, é que existem alguns estudos em países que estão fazendo rastreamentos detalhados de casos que apontam que uma transmissão secundária por esse grupo é "muito rara". "Estamos constantemente analisando esses dados e tentando conseguir mais informações dos países para, de fato, responder a essa pergunta. Ainda parece ser raro que um indivíduo assintomático realmente transmita adiante (o vírus)", afirmou Van Kerkhove.

Porém, em nenhum momento ela afirma que a transmissão por assintomáticos não é possível, nem aponta que medidas de isolamento mais amplas foram desnecessárias. Além disso, na mesma entrevista, Van Kerkhove faz a ressalva que há casos de pessoas que aparentam não ter sintomas, mas que de fato apresentam quadros leves ou apenas ainda não desenvolveram indícios de covid-19 -- os chamados pré-sintomáticos. As declarações podem ser vistas em vídeo no YouTube ou na transcrição oficial da conferência.

O gerente de incidentes da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), braço da OMS nas Américas, Sylvain Aldighieri, reforça essa diferença entre os chamados assintomáticos e os pré-sintomáticos. "Os dados científicos, até o momento, mostram que é menos provável ter o contágio a partir de uma pessoa totalmente assintomática, em comparação com as pré-sintomáticas."

COVID-19 Virtual Press conference WHO 8 June 2020 (em inglês)

Nesta terça-feira, 9, a líder técnica afirmou que houve um "mal-entendido" nas declarações de ontem. Segundo ela, existem "pouquíssimos estudos" que tentaram acompanhar casos assintomáticos, uma "amostragem pequena", e que alguns dados não foram sequer publicados ainda. "Eu usei a frase 'muito rara'. Acho que há um mal-entendido em afirmar que, globalmente, essa transmissão por indivíduos assintomáticos é muito rara. Eu me referia apenas a um grupo pequeno de pesquisas", justificou-se Van Kerkhove. A íntegra do conteúdo está disponível na página da OMS no Facebook.

Ela também disse que o contexto da frase era uma pergunta específica sobre o atual entendimento científico e que a resposta não deveria ser entendida como uma posição oficial da OMS sobre o assunto.

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OMS esclarece que pacientes assintomáticos podem transmitir covid-19

Uma publicação falsamente afirma que a "OMS conclui que pacientes assintomáticos não têm potencial de infectar outras pessoas". Mas em coletiva para esclarecer o tema nesta terça, 9, Michael Ryan foi enfático ao dizer que está "absolutamente convencido" de que a transmissão por pacientes assintomáticos está ocorrendo. "A questão é saber em qual proporção", complementou.

"Bolsonaro avisou, defendeu o isolamento apenas para quem estava com sintomas da doença, mas o Supremo Tribunal Federal para os governadores e prefeitos o poder da decisão... Agora a OMS divulga que assintomáticos não transmitem a doença e o isolamento foi desnecessário", diz outra publicação que atingiu mais de 115 mil visualizações e 5 mil compartilhamentos em menos de 24h. A OMS esclareceu que não mudou sua política de combate à pandemia.

Michael Ryan falou que a estratégia sempre foi identificar as pessoas contagiadas e isolá-las para interromper a transmissão. "Alguns países não conseguiram ver onde o vírus estava porque muitas pessoas estavam potencialmente contaminadas. Seja por causa de sintomas fracos ou de casos assintomáticos. A decisão acertadamente tomada foi de colocar todo mundo em suas casas, isolar a todos, até que a pandemia enfraquecesse", disse Ryan.

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Bolsonaro usou declaração para defender flexibilização do isolamento

O presidente Jair Bolsonaro usou a frase da diretora técnica da OMS para defender uma "abertura mais rápida do comércio e a extinção de medidas restritivas" contra o novo coronavírus, durante reunião ministerial desta terça-feira, 9, transmitida ao vivo pela TV Brasil. "Esse pânico que foi pregado lá atrás por parte da grande mídia começa talvez a se dissipar levando em conta o que a OMS falou por parte do contágio dos assintomáticos", declarou Bolsonaro. "O governo federal espera algo de concreto nas próximas horas, nos próximos dias, o que será muito bom para o Brasil e o mundo. A OMS falará com certeza sobre as suas posições adotadas nos últimos meses, o que levou a muita gente a segui-la de forma cega", disse.

Na mesma entrevista citada, a OMS pediu "transparência" ao Brasil na divulgação de dados sobre a covid-19, em referência às alterações recentes no boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, que passou a ocultar os números acumulados de casos e mortes em decorrência do novo coronavírus. A entidade espera uma rápida solução para a "confusão" no País, e ressalta que a clareza no processo é "ainda mais importante" para os cidadãos.

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As postagens enganosas também fazer referência a conflitos entre Bolsonaro e autoridades regionais, o que de fato ocorreu durante a pandemia. Em pronunciamento em rede nacional, chegou a afirmar que a covid-19 era uma "gripezinha" e que governadores e prefeitos deveriam "abandonar o conceito de terra arrasada". O presidente também defendeu um "isolamento vertical", ou seja, destinado apenas aos grupos de risco. Esses posicionamentos foram ignorados por diversas autoridades do país que optaram por decretar medidas restritivas mais amplas após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que garantiu essa autonomia.

Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.

Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook  é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas:  apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.

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