Alessandra Monnerat
29 de julho de 2020 | 14h26
Não é verdade que a Organização Mundial da Saúde (OMS) tenha deixado de classificar a maconha como droga. Consultada pelo Estadão Verifica, a entidade informou que “não fez qualquer divulgação recente sobre o tema” e disse considerar a cannabis como droga. Essa informação está disponível no site oficial da OMS, que define a substância como “de longe a droga ilícita mais amplamente cultivada, traficada e abusada (no mundo)“.
A informação falsa foi publicada em artigo do site “Medicina News”, que ganhou 8,9 mil compartilhamentos no Facebook desde 24 de julho. O site “Diário Online” também publicou uma matéria semelhante, que posteriormente saiu do ar. Uma das postagens deste link no Facebook, na página “Quebrando o Tabu”, obteve 29 mil compartilhamentos em dois dias.
O que realmente ocorreu foi que, em janeiro de 2019, uma reunião do Comitê de Peritos em Dependência de Drogas da OMS recomendou a reclassificação de cannabis e de outras substâncias relacionadas. As orientações do comitê ainda precisam ser votadas pelos países-membros do Comitê de Narcóticos da Organização das Nações Unidas (ONU) — isso está previsto para ocorrer em dezembro deste ano.
A proposta é reclassificar a maconha em um tratado internacional de drogas da ONU — a Convenção Única de Entorpecentes, finalizada em 1961. Em 1972, esse documento recebeu emenda com novas definições. A reunião da OMS também propôs mudanças na Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971.
O tratado de 1961 divide os entorpecentes em quatro listas diferentes, de acordo com as medidas de fiscalização recomendadas aos governos signatários. A lista mais restritiva é a IV — as substâncias listadas tem “produção, fabricação, exportação e importação, comércio, posse ou uso” proibidos (com exceção de uso médico e em pesquisa), segundo o texto aprovado no Brasil. Entre as drogas incluídas nessa categoria estão heroína, desomorfina e cannabis.
O que a reunião do comitê da OMS recomendou foi retirar a maconha e a resina da planta dessa lista mais restritiva. Outra orientação foi adicionar um dos componentes da cannabis, o THC (tetra-hidrocanabidiol, com efeito psicoativo) à lista I, que reúne todas as substâncias consideradas como entorpecentes. Os especialistas indicaram ainda que preparações que contenham predominantemente outro componente da cannabis, o CBD (canabidiol, que tem efeito relaxante), deveriam ser retiradas de controle internacional.
No documento abaixo, que reúne perguntas e respostas sobre a decisão de recomendar a reclassificação, o comitê explica que novas pesquisas científicas robustas embasaram a revisão sobre a cannabis. A OMS reconhece ter havido uma “vasta mudança” no entendimento sobre a droga desde a convenção de 1961 — incluindo o conhecimento de que alguns componentes da maconha têm efeito psicoativo, e outros não.
A entidade também indica haver evidências conclusivas que cannabis e canabinoides são efetivos no tratamento de dor crônica em adultos, de vômito e náusea relacionados a quimioterapia e de sintomas de esclerose múltipla. Há ainda evidência moderada de benefícios para pacientes com apneia do sono e fibromialgia.
Em resposta a uma pergunta dos Estados Unidos, o Comitê de Controle Internacional de Narcóticos da OMS afirmou que a retirada da cannabis e de sua resina da lista IV da Convenção de 1961 não teria grande impacto nas medidas de controle adotadas atualmente, já que as duas substâncias citadas permaneceriam na lista I (de entorpecentes).
A divulgação mais recente relacionada à OMS sobre uso de maconha é do final de junho. O escritório da ONU sobre Drogas e Crimes (UNODC) divulgou um relatório sobre o consumo global de drogas. O texto apresenta como drogas opioides, cocaína, cannabis, estimulantes do tipo anfetamina e Novas Substâncias Psicoativas (NPS).
O documento reconhece que a maconha foi a droga mais usada no mundo em 2018, com estimativa de mais de 192 milhões de usuários. No entanto, a entidade considera os opioides como o grupo de substâncias mais nocivo — na última década, o número de mortes associadas ao uso dessas drogas aumentou 71%. Os óbitos relacionados a opioides representam 66% do total de mortes ligadas ao abuso de drogas, apesar dessas substâncias serem menos consumidas do que a cannabis (o número estimado de usuários de opioides em 2018 é de 58 milhões).
A UNODC avaliou ainda que, após a legalização da maconha em lugares como Canadá, Uruguai e certos Estados americanos, o uso frequente da droga cresceu em todas as áreas. A entidade expressou preocupação com a proliferação no mercado de produtos com alta concentração de THC. O relatório afirma que essas preparações são mais prejudiciais do que a erva e a resina de maconha que estavam disponíveis há algumas décadas.
Ainda em relação à legalização, a UNODC observou que a influência e o investimento de grandes corporações na área da cannabis — como empresas da indústria de álcool e tabaco — causa preocupação. Isso porque a entidade considera que o lucro pode ditar o debate público em torno do tema, deixando de lado a discussão sobre saúde.
Em geral, a quantidade de maconha apreendida em operações policiais caiu — na América do Norte, a queda foi de 84% nos últimos anos. Ainda assim, o relatório estima que 40% dos usuários recorrem a fontes ilegais para o uso da droga. A droga também continua sendo a principal substância que coloca as pessoas em contato com o sistema de justiça criminal. Mais da metade dos casos de infração a leis de drogas entre 2014 e 2018 tinha relação com cannabis, com base em dados de 69 países.
Veja abaixo o sumário executivo do relatório (em inglês).
A OMS afirma haver vários efeitos graves e crônicos do uso de maconha à saúde. Veja a lista abaixo, disponível no site da entidade internacional.
Os sites E-Farsas e Fact Crescendo (Índia) também desmentiram a alegação analisada pelo Verifica.
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