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A análise atenta dos principais depoimentos e documentos obtidos pela CPI da Covid na visão do especialista em saúde pública Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP

CPI da Covid manda prender, mas vacinação segue lenta

Por Mário Scheffer
Atualização:
A ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde, Francieli Fantinato. Foto: Adriano Machado/REUTERS

O plano de trabalho aprovado pela CPI no dia 28 de abril prometia apurar o "enfrentamento da pandemia no Brasil" e investigar se o governo federal deixou de agir para "minimizar perdas e proteger a população".

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Em todo o percurso, nas raras pausas da excessiva simplificação em torno de vacinas, cloroquina e "gabinete paralelo", fazia-se odes ao SUS e referências à responsabilização de agentes públicos pelas mortes em excesso por covid no País.

De um lado, a liturgia ditada pelo grupo de senadores que domina a CPI aniquilou a tática dos governistas de proteger o presidente da República e deslocar o alvo do inquérito na direção de governadores.

De outro, em rápida debandada, os mesmos senadores promoveram a inflexão antes evitada: a urgência de saúde pública deu lugar ao caso de polícia.

O cavalo-de-pau tem lá sua serventia, pois corrupções contemporâneas podem desgastar o governo de agora e a dissecção de condutas ilícitas nas compras do SUS pode contribuir para alterar padrões que vêm de outrora.

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Não só nas intenções do relatório final, mas era no seu desenrolar que se esperava da CPI intervenções para deter as condutas abjetas do governo federal e para reverter logo a situação sanitária ainda alarmante.

Desde o momento em que senadores escolheram cortar o tecido no sentido do fio, deu-se o previsível contra a CPI, crivam-na de insultos e de ameaças à sua continuidade.

Tem-se hoje um inquérito encalacrado, na polêmica criada em torno da prisão do depoente mentiroso, na dura nota das Forças Armadas em repúdio ao presidente da CPI, na sabotagem do próprio Senado via recesso parlamentar ou negativa da prorrogação dos trabalhos.

Quanto mais a CPI se afunda nas degenerescências da política, mais se afasta da saúde da população que tenta sobreviver na superfície.

Plano Nacional de Imunização

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No clima do thriller policial da véspera, sem ver superado certo limiar de tensão, deu-se o depoimento de Francieli Francinato, técnica e ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunização (PNI).

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"Bem, senhoras e senhores, para um programa de vacinação ter sucesso, é simples, é necessário ter vacinas, é necessário ter campanha publicitária efetiva. Infelizmente, não tive nenhum dos dois."

Não é tão simples assim. Mas, de fato, seis meses depois de iniciada a vacinação, menos de 20% da população acima de 18 anos foi completamente imunizada contra a covid. A insuficiência de doses está associada com a persistência de casos graves em UTIs e com elevado número de mortes evitáveis em 2021.

Mais de dois milhões de pessoas que tomaram a primeira dose não retornaram para a segunda, passado o intervalo de tempo preconizado. Este é um problema que poderia ser reduzido com campanhas nacionais, reclamadas por Francieli.

Em documento encaminhado à CPI (DOC 867) o Ministério da Saúde reporta apenas oito ações publicitárias sobre vacinação em 2021, de conteúdos genéricos e vagos, mais voltadas à autopromoção e divulgação do número de doses adquiridas. Em abril de 2021 o governo federal ainda insistia com uma nova campanha sobre o "atendimento precoce" eufemismo que substituiu o patrocínio mais explícito do uso da cloroquina em 2020.

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Conceder exclusividade às vacinas como estratégia de redução da transmissão do vírus se mostrou um equívoco.

Testagem e máscaras de boa qualidade continuam sendo priorizadas mesmo em países com altas coberturas vacinais.

O Brasil, com taxas de transmissão da covid-19 de 0,91 nesta semana, segundo o Imperial College de Londres, mantém destacado lugar na liderança mundial dos óbitos.

Programas nacionais de imunização combinaram dois principais componentes: um plano de produção e aquisição de vacinas; e um plano de vacinação (com duas doses) de grupos prioritários.

O Brasil segmentou, criou especialistas em compras de imunizantes e em dinâmica de imunização. O PNI se tornou uma central burocrática de distribuição de doses escassas e abdicou da coordenação nacional para que secretarias estaduais e municipais toquem calendários vacinais "acelerados", que têm deixado muita gente para trás, sem vacinar.

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O PNI não se ocupa de atualizar o repertório de vacinas, de promover estudos sobre efetividade dos imunizantes, de fazer a vigilância da transmissão e das variantes, de antecipar o planejamento sobre eventual terceira dose e imunização de adolescentes e crianças.

Pelo andar da carruagem, com ordens de prisão e alegado sucesso da vacinação, dificilmente a saúde pública será retomada como assunto principal da comissão de inquérito.

"Senhor presidente, por favor, diga para a gente que o deputado Luis Miranda é um mentiroso, diga à nação brasileira que o seu líder na Câmara (Ricardo Barros) é um homem honesto."

No púlpito do Senado, ecoou o apelo do senador Omar Aziz, acusado mais cedo por Bolsonaro de ter desviado R$ 260 milhões do Amazonas.

Julio Cortázar, em um de seus contos, imaginou que deve existir em algum lugar um depósito de lixo onde estão amontoadas as explicações. Só uma coisa, ressaltou, é inquietante, nesse preciso panorama: o que vai acontecer no dia que alguém explicar também o depósito de lixo?

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