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Vida exemplar de uma intelectual

Mestra de várias gerações de intelectuais, Ruth Cardoso uniu em sua obra pesquisa e solidariedade

Por Lilia Moritz Schwarcz
Atualização:

Sábado à tarde, quatro dias antes de vir a falecer, Ruth Cardoso podia ser encontrada na cama do hospital onde fora internada para se submeter a um cateterismo, lendo um livro chamado A Infiel: a autobiografia de Ayaan Hirsi Ali, refugiada da Somália que faria carreira como deputada na Holanda. Quem presenciou a cena foi sua colega e ex-orientanda Guita Grin Debert, que não deixou de notar no semblante da amiga o mesmo entusiasmo intelectual que lhe era característico. "Ruth dizia que o mais interessante era rever, através de histórias de famílias, processos políticos que abalaram países e continentes." Segundo Guita, esse era "um comentário típico do fazer antropológico que ela ensinava a praticar: através de um estudo detalhado e aprofundado de situações muito particulares, seria possível sofisticar a apreensão de questões de ordem mais geral".   Olhar para histórias de vida, entrevistar moradores de favelas, entrar em bairros da periferia, analisar discursos políticos, discutir com o feminismo, explorar o tema da juventude ou entender a dinâmica dos movimentos sociais fazia parte da atividade dessa antropóloga heterodoxa, atraída pelos assuntos mais diversos; até mesmo aqueles pouco valorizados pela academia. "Numa época em que só se discutia ?a grande política?, Ruth tinha a capacidade - confirmou Daniele Ardaillon - de se engajar em assuntos mais inovadores, sempre de maneira serena, mas também rigorosa."   É essa Ruth, orientadora de várias gerações de intelectuais; alegre e cordial; capaz de oferecer um livro de receitas "fáceis e gostosas" para duas de suas discípulas - Maria Filomena Gregori (a Bibia) e Esther Hamburger -, ou de dar conselhos à sua orientanda Lygia Sigaud sobre onde esconder o dinheiro durante uma viagem, que vem deixando muitas saudades, depois da triste surpresa de sua morte no último dia 24 de junho. Mais viva do que nunca, Ruth, a antropóloga, aparece delineada neste artigo a partir da fala de seus ex-alunos; amigos fiéis que recuperam a trajetória dessa grande intelectual.   Ruth Corrêa Leite Cardoso formou-se pela USP em 1952 e lá conheceu Fernando Henrique Cardoso, com quem se casou em 1953. Seis anos depois faria seu mestrado e em 1972 concluiria o doutorado com a tese Estrutura Familiar e Mobilidade Social: Estudo dos Japoneses no Estado de São Paulo. O trabalho que se converteria em livro guarda grande atualidade, como lembra sua orientanda Célia Sakurai: "Nestes tempos de comemoração de centenário da imigração japonesa, vale a pena prestar atenção nas conclusões de Ruth." No trabalho, a jovem intelectual contemplava o problema de gerações que se apresentava para essa comunidade: com o esforço dos primeiros imigrantes em educar filhos e netos, produzia-se um gap cultural, mas também uma "brasilidade consciente".   Mas sua vida na universidade seria interrompida pelo golpe militar de 1964, que fez com que o casal procurasse exílio, primeiro no Chile e depois na França. Ruth abandonaria o tema de sua pesquisa, apesar de não perder de vista a questão de fundo que o orientava e que exigia um diálogo estreito entre a antropologia e a ciência política. Assim, se o exílio levou Ruth do Brasil, não lhe abateu a curiosidade - fora do País, atuou numa série de instituições estrangeiras: Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso Unesco), Universidade do Chile (Santiago do Chile), Maison des Sciences de L?Homme (Paris), Universidade da Califórnia em Berkeley e Universidade de Columbia (em Nova York). De volta, manteve seu posto como professora no Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e passou a dar vazão a uma de suas maiores vocações: a de formar pesquisadores e criar projetos de grandes proporções. Maria Filomena Gregori disse ter aprendido "o ofício de pesquisadora e de antropóloga com a Ruth". "Ela me ensinou a pensar", resume Simone Coelho. A antropóloga investiria pesadamente na pesquisa de campo e acolheria temas que fugiam da agenda política daquele momento, mais voltada para a questão da redemocratização. Ruth traria novas dimensões para a análise dos processos políticos, ao propor o estudo de minorias discriminadas, que até então eram identificadas como questões menores.   Foi em 1981 que, apoiada pelos professores Eunice Durham e José Augusto Guillon Albuquerque, Ruth criou o projeto O Contexto Cultural da Ação Política, que durou de 1981 a 1983. Ela já havia atuado em outra investigação pioneira sobre favelas paulistanas, mas dessa vez reuniria um grupo de jovens alunos; pesquisadores em sua boa parte recém-saídos das cadeiras da graduação, hoje professores e profissionais renomados: Flavio Pierruci, Teresa Caldeira, Helena Sampaio, Celia Sakurai e Antonio Teixeira Mendes, entre outros. Todos eles foram a campo e passaram a literalmente morar nos bairros pobres da cidade, de modo a fazer um acompanhamento cotidiano das práticas de seus habitantes. "Era a época da passagem do bipartidarismo para o pluripartidarismo - lembra Pierrucci - e Ruth andava interessada em entender o ponto de vista dos moradores das periferias." Os investigadores saíram de suas casas para residir em Cidade Júlia, Jaguaré, Jardim Miriam, Jardim das Camélias ou em Osasco, e acompanhavam o trabalho das associações de bairro, procurando entender a constituição de lideranças e a maneira como elas barganhavam com as administrações públicas locais. Já fazia parte dessa agenda de pesquisas analisar as relações entre movimentos sociais e o Estado, as novas maneiras de empreender o jogo político e os mecanismos de constituição de novos atores sociais. A pesquisa geraria uma nova linha no Cebrap - que ganhou o nome de Cultura e Política -, assim como levaria à criação de um seminário de mesmo nome, e que organizado pelos mesmos professores, congregava na USP alunos interessados nessa nova problemática, mas também na bibliografia atualizada que por lá se discutia. Os diferentes orientandos são unânimes em dizer que foi com a mestra que leram Lévi-Strauss, Althousser e Foucault pela primeira vez. "Ruth sempre foi irreverente", comenta Esther; comportamento que pode ser traduzido como independência.   Na universidade, essa irreverência se traduzia na crítica acirrada a duas concepções que dominavam o debate intelectual do momento. Por um lado, o conceito de alienação e de falsa consciência, que fazia com que se entendesse as manifestações populares - o carnaval, o futebol ou a religiosidade - como elementos que apenas serviam para a manipulação dos trabalhadores. De outro lado, o modelo da "resistência", que invertia a chave explicativa dessas mesmas manifestações populares, que passavam a ser interpretadas como formas de se contrapor ao sistema de dominação, ao autoritarismo e ao individualismo que marcavam a vida social brasileira. Os estudos minuciosos empreendidos por Ruth e sua equipe de alunos mostravam, porém, como conceitos muito abrangentes ajudavam pouco a entender as práticas populares. O mais importante era explorar a heterogeneidade das experiências e os espaços que elas abriam para novas práticas políticas.   Surge daí o interesse de Ruth pelas organizações populares e pelas novas formas que assumem tanto os movimentos sociais urbanos, como os chamados movimentos libertários. "Ela percebia e estudava novas formas de fazer política que surgiam nos bairros e nos movimentos sociais", destaca Esther Hamburger. Para além dos partidos e do Estado, Ruth localizava formas de atuação que hoje são chamadas de terceiro setor e que na época, como mostrava a tese da aluna Simone Coelho, revelavam novos dilemas e necessidades institucionais.   Numa época em que o feminismo aparecia tímido no Brasil, Ruth agarrou mais essa causa, sem nunca ter sido uma radical. O feminismo, para ela, não significava exclusivamente uma luta para libertar mulheres vítimas da opressão, mas um dos movimentos mais importantes na promoção de um mundo melhor, para homens e mulheres. Ela orientou trabalhos no tema, como os de Maria Filomena Gregori (sobre o SOS Mulher), e de Danielle Ardallion e de Guita Debert, acerca do modo como crimes de homicídio, estupro e espancamento eram julgados. Foi também com essa sua ousadia que apoiou pesquisas de assuntos os mais variados: juventude, mulheres de classe média, sexualidade, violência, infância, drogas, mídia, e também, projetos sobre história da antropologia (como o estudo de Mariza Correa) ou investigações que abririam a nova área de antropologia urbana (explorada, entre outros, por José Guilherme Magnani). Organizou em 1986 a coletânea A Aventura Antropológica, que é hoje uma referência importante nos cursos e obras mais contemporâneas. No seu artigo, anunciava um diálogo com a pós-modernidade, colocando em questão os modos convencionais de pensar a observação participante, tida como a pedra de toque do fazer antropológico.   Essa independência que abala convenções e chaves explicativas criou, certamente, objeções, e Ruth - a antropóloga e formadora de antropólogos - acabou encontrando, por mais paradoxal que possa parecer, um abrigo mais confortável no Departamento de Ciência Política da USP. Mas, o distanciamento com a Antropologia foi mais circunstancial e político do que intelectual e efetivo. Afinal, Ruth sempre agiu como antropóloga na sua busca de compreender a perspectiva do outro. O tema da exclusão, por exemplo, fez parte constante das inquietações dessa intelectual que nunca se preocupou em publicar muito. Ao contrário, mais incentivou e arregaçou as mangas quando o negócio era pesquisar. Conta Danielle que Ruth não tinha currículo organizado até 2000 e ficou feliz quando "recebeu" um. Célia Sakurai ri quando se dá conta de que "boa parte das pesquisas nunca foi publicada em livros, só em artigos esparsos".   Pode-se entender, pois, o Conselho da Comunidade solidária - órgão da presidência da República, mas não governamental - que Ruth presidiu e formou em 1995, como uma continuidade quase óbvia de seu trabalho, que tinha como preocupação, justamente, o fortalecimento da sociedade civil. É também por conta disso que Ruth nunca se portou como primeira-dama mesmo tendo sido, como diz Esther "a primeira Dama" que todos nós sempre desejamos. Comunidade solidária não foi um programa "inventado" para ocupar os anos em Brasília ou para dar conta do vazio deixado pela recém-extinta LBA (órgão tradicionalmente presidido pelas primeiras-damas). Ele faz parte dessa arquitetura lenta e calmamente criada por Ruth - uma "trajetória intelectual", conforme escreve sua colaboradora Helena Sampaio. Nada foi, portanto, artificial; apenas coroou um longo processo feito de muito trabalho, pesquisa e solidariedade. Por sinal, solidariedade é termo que combina com Ruth; constantemente destacado por todos que falam a seu respeito. "Pobreza custa caro", costumava dizer a antropóloga, uma vez que acreditava ser preciso ir além das práticas assistencialistas, que apenas alimentavam, em sua opinião, a dependência face ao Estado.   Filha de um tempo que fez intelectuais sofisticados, mas também militantes engajados, Ruth jamais se furtou a compatibilizar conhecimento acadêmico com a realidade que a cercava. Por isso sofreu nos primeiros anos em Brasília, quando muitos dos colegas da academia injustamente julgaram que tivesse "mudado de lado". Também sentiu quando seu projeto - Comunidade Solidária - foi a princípio tachado como "coisa de socióloga", ou no momento em que sua independência intelectual acabou por lhe gerar alguns inimigos, até dentro do governo.   Hoje tudo parece distante. Seu programa se tornou exemplar; todos elogiam a atitude de recusar o título de primeira-dama, ou relembram seu papel como antropóloga; assim como não há quem deixe de mencionar sua elegância na passagem pelo poder. Mas na vida dessa intelectual sempre discreta, apaixonada pela educação e pelo direito à igualdade, nem tudo veio como presente embalado. Ao contrário, custou-lhe muito resistir aos papéis que lhe eram previamente reservados. Por isso, assumiu tantos: foi orientadora, inspiradora, professora, interlocutora, antropóloga e uma grande cidadã. Foi uma "inovadora pedagógica", nas palavras de Eunice Durham. "Sabia ouvir e respeitava", resume Gilberto Velho, um de seus primeiros pupilos.   Ela foi a mestra de várias gerações de cientistas sociais; no mínimo três. Eu a reencontrei apenas recentemente: no comitê científico de Harvard no Brasil. Ruth discutia e argumentava a todo tempo, mas com tal calma e naturalidade que parecia convencer a todos, pela mera presença e simplicidade. Na última vez que a vi, ela "estava em ação": participava de uma banca de doutorado na USP. Chegou pontualíssima; negou-se a falar em primeiro lugar (alegando ser "membro da casa"), fez uma bela argüição (sempre afirmando que não tinha nada de novo a dizer) e agradeceu o convite como se fosse a primeira vez que estivesse ocupando esse local e posição. Por um lado, é certo que há alguns anos a mestra não era chamada para esse tipo de atividade, que desempenhava tão bem. Por outro, é possível dizer que estávamos diante de mais uma mostra da vivacidade com que Ruth entrava em qualquer atividade que a desafiasse. A professora terminou sua fala sinceramente comovida e completou: "Estou de volta."   A morte a levou com um inexplicável enfarte fulminante, e não há quem não tenha se sentido atingido por ele. Cada personagem deste artigo conta, de maneira semelhante, mas também distinta, a mesma história, que poderia ser narrada por ainda outros alunos e amigos. É impossível resumir uma vida bem vivida como a de Ruth Cardoso. Melhor terminar com o relato de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, lamentando a morte da mãe. "Ela morreu num dia chovedor, aí foi grande a minha tristeza. Mas uma tristeza que todos sabiam, uma tristeza do meu direito. De desde, até hoje em dia, a lembrança de minha mãe às vezes me exporta. Ela morreu, como a minha vida mudou para uma segunda parte. Amanheci mais e menos."   Depois da morte de Ruth, o Brasil acordou em luto; diferente. Algo fazia muita falta e o dia "amanheceu menos".   Nas Livrarias: A Aventura Antropológica: Análise dos conceitos, procedimentos e metodologia de pesquisa antropológica (Paz e Terra, 158 págs., R$ 31) Terceiro Setor: Organizado em parceria com Evelyn Berg Ioschpe, reúne textos apresentados no III Encontro ibero-americano do Terceiro Setor, em 1996 (Paz e Terra, 174 págs., R$ 35)     * Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do Departamento de Antropologia da USP. Este artigo foi escrito com o apoio de muitos e preciosos depoimentos de orientandos, amigos e colegas de Ruth Cardoso   Nota da Redação: este texto foi originalmente publicado em O Estado de S. Paulo em 6 de Julho de 2008

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