Uma arca de Noé agita a temporada política em Brasília

Uma discussão interminável sobre “gênero e sexo” quase fez cair por terra a Medida Provisória que determina um pente-fino nos benefícios do INSS

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Por Vera Rosa
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Quem acompanhou a sessão da Câmara que começou na noite de quarta-feira, 29, e só terminou na madrugada de quinta, 30, saiu do plenário com a sensação de que a arca de Noé havia estacionado ali. Não sem motivo: de repente, uma discussão interminável sobre “gênero e sexo” quase fez cair por terra a Medida Provisória que determina um pente-fino nos benefícios do INSS

A confusão aconteceu porque a MP enviada pelo governo à Câmara dizia que, na lista de dados informados por cartórios ao INSS, deveria constar, além do CPF, filiação e local de nascimento, o gênero da pessoa. A bancada evangélica pediu a exclusão da palavra “gênero”, sob o argumento de que só existem dois sexos: masculino e feminino.

O presidente Jair Bolsonaroprestigiouo humorista Carlos Alberto da Nóbrega, homenageado em sessão solene na Câmara comandada pelo deputado Alexandre Frota (PSL-SP) Foto: Michel Jesus/Câmara dos Deputados

Com uma Bíblia na mão elevada aos céus, Pastor Sargento Isidório (Avante-BA) andava de um lado para outro no plenário, parecendo inconformado. “Na Bíblia não tem gênero. Só tem sexo”, gritava ele.

O PSL do presidente Jair Bolsonaro apoiou a reivindicação dos evangélicos e também quis tirar o gênero dali, mesmo mexendo na proposta encaminhada pelo Palácio do Planalto. A oposição foi contra.

“Inventaram agora que não se pode discutir nem gênero alimentício nem gênero gramatical”, ironizou o deputado Ivan Valente (PSOL-SP). “Isso aqui é um espetáculo da estupidez humana.”

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), percebeu que, se o termo “gênero” fosse suprimido, o cadastro enviado aos cartórios pelo INSS ficaria com uma lacuna. Foi então que alguém sugeriu trocar a expressão “gênero” por “sexo”. Nova polêmica e mais barulho.

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Entre um “não podemos fazer um debate xenófobo fundamentalista” de um lado e “há uma fundamentação etimológica necessária” de outro, o deputado Domingos Sávio (PSDB-MG) tentou por os pingos nos ‘is’. Diante do microfone, ele avisou: “Em biologia, gênero é a expressão usada para indicar sexo.”

Após mais de três horas de discussão, na qual a oposição acusava o PSL de sofrer de “generofobia”, foi feito um acordo para salvar a MP, que ainda passará pelo Senado na segunda-feira, 3, dia em que, se não for aprovada, perderá a validade. Pelo acerto, embora o “gênero” continue firme e forte no texto, o governo e a bancada evangélica apresentarão, em breve, um projeto pedindo a troca da palavra por “sexo”.

A calma de Maia na sessão que varou a madrugada impressionou até os seus amigos. Nada, porém, parecia incomodá-lo mais naquele dia sem fim. Logo pela manhã, ele tivera de cancelar às pressas conversas em andamento com um grupo de deputados, na residência oficial, para recepcionar Bolsonaro, que, na última hora, resolveu ir a pé do Planalto para a Câmara.

O presidente atravessou a Praça, que, ultimamente, está longe de ser a da alegria, para prestigiar o humorista Carlos Alberto da Nóbrega, homenageado naquele momento em sessão solene comandada pelo deputado Alexandre Frota (PSL-SP). Maia chegou atrasado.

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As “incertas” de Bolsonaro fazem parte da estratégia montada por sua equipe de comunicação. Aconselhado a adotar o estilo “gente como a gente”, ele já foi ao cinema em um shoppping de Brasília, andou de moto no Guarujá, saiu para visitar o filho no fim de semana, almoçou em restaurantes à beira da estrada e tem parado para tirar selfies com eleitores, no Palácio da Alvorada.

Após as manifestações que defenderam o governo e criticaram o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), no domingo, 26,   Bolsonaro também tirou da manga a proposta de pacto entre os Poderes. A ideia, no entanto, não é dele, mas, sim, do presidente do STF, Dias Toffoli, de quem Bolsonaro se aproximou muito. Na quinta-feira, 30, o presidente chegou a dizer que é bom ter a Justiça “do lado certo”. Nesta sexta, 31, ao criticar a possibilidade de o STF “legislar” para enquadrar a homofobia como crime de racismo, Bolsonaro perguntou: “Será que não está na hora de termos um ministro do Supremo Tribunal Federal evangélico?” 

A frase causou mal estar no STF e reforçou as críticas da oposição e do Centrão ao acordo de cavalheiros entre Executivo, Legislativo e Judiciário. “O governo quer aparecer como patrocinador da harmonia em um dia, mas no outro joga a sociedade contra o Parlamento e o Judiciário. É um pacto para inglês ver”, resumiu o deputado Wellington Roberto (PB), líder do PL (ex-PR), como você pode ler aqui e também no editorial do Estadão.

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Maia só foi ao Alvorada para um café da manhã com Bolsonaro, tendo o tal pacto no cardápio, após ser convencido pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Não queria ir. Chegou cinco minutos atrasado, ao lado de Alcolumbre. Antes distantes, os dois agora viraram tão amigos que abriram uma passagem para ligar as duas casas, na Península dos Ministérios, no Lago Sul.

Toffoli, Maia, Bolsonaro e Alcolumbre; chefes dos Poderes se encontraram no Palácio do Planalto na terça-feira, 28 Foto: Marcos Corrêa/PR

Ao desembarcar no Alvorada, a dupla ouviu de Bolsonaro – ainda sem a caneta Bic a postos – uma de suas costumeiras piadas. “Os gordinhos sempre chegam atrasados”, disse ele.

Quarenta e oito horas depois, no mesmo dia do anúncio da queda de 0,2% do PIB e do segundo protesto de estudantes contra os cortes na educação, o DEM fez uma convenção, em Brasília. Aprovou moção de apoio à reforma da Previdência, após o ministro Paulo Guedes (Economia) – chamado de “PG” por Bolsonaro – pedir ajuda, mas a adesão ao governo não saiu da prateleira.

 “O DEM não pode ser como dieta de cardíaco, que não tem sal nem açúcar”, provocou o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, apelando para que o DEM entrasse na base aliada. Não adiantou.

Caiado, Alcolumbre e o presidente do DEM, ACM Neto, já haviam tido uma conversa “sem filtros” com Bolsonaro, a portas fechadas, uma semana antes. Com o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, presente à reunião, em um fim de tarde no Planalto, todos expuseram as queixas sobre fragilidades da articulação política.

“No governo a gente enfrenta uma onça num dia e um leão no outro”, afirmou Onyx. Às vésperas das festas juninas, Brasília vive agora mais um capítulo da série“cada dia com sua agonia”. Sempre entre onças, leões, canetas Bic e caneladas.

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