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'Trabalho no DOI era degradante', diz 2º policial a confirmar tortura na ditadura

Depoimento prestado por Manoel Aurélio Lopes à Comissão da Verdade é o segundo de um agente de Estado a admitir a existência de tortura nas instituições policiais e militares naquele período

Por Roldão Arruda
Atualização:

O policial civil aposentado Manoel Aurélio Lopes, de 77 anos, admitiu nesta terça-feira, 25, em audiência pública da Comissão Nacional da Verdade, em São Paulo, ter presenciado cenas de tortura de presos políticos nas dependências do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), nos anos da ditadura militar.

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Ele atuou naquela instituição entre 1969 e 1972. Depois foi transferido para o Destacamento de Operações de Informações - Centro de Informações de Defesa Interna (DOI-Codi), vinculado ao 2.º Exército, onde voltou a presenciar torturas, segundo seu depoimento.

Esta foi a segunda vez que um agente de Estado admite perante a Comissão da Verdade, em audiência pública, a existência de tortura nas instituições policiais e militares naquele período. O primeiro foi o policial militar Valter Jacarandá, que prestou depoimento no Rio, em agosto do ano passado.

Lopes era escrivão e, segundo informou, cuidava principalmente da transcrição de depoimentos. Ele negou ter participado de interrogatórios nos quais os presos eram torturados. Ao ser perguntado, porém, se nunca tinha presenciado cenas de torturas, ele admitiu que sim, tanto no Dops quanto no DOI-Codi.

Disse que tinha autorização para circular pelas dependências das duas organizações e que testemunhou casos em que o prisioneiro, homem ou mulher, era forçado a se equilibrar sobre duas latas de leite em pó, com os braços abertos e segurando folhas de papel. Quando o detento perdia o equilíbrio ou deixava os braços caírem, apanhava. Entre ex-presos políticos, esse tipo de tortura é conhecido como Cristo Redentor.

Ele também fez referência à cadeira do dragão, que era de ferro e servia sobretudo para aplicar choques elétricos nos prisioneiros. "Outro quadro que presenciei foi o 'pendura'", disse a jornalistas, após a audiência, referindo-se ao chamado pau-de-arara.

Lopes é diabético, tem problemas circulatórios e dificuldades de audição. Na avaliação dele, aquela foi uma fase do Brasil na qual teriam ocorrido "excessos dos dois lados".

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Ele contou que os policiais civis que eram transferidos para atuar sob ordens de militares, no DOI-Codi, recebiam uma gratificação extra, em dinheiro. "Era um presente para quem ia trabalhar lá, uma casquinha", observou.

A gratificação não aparecia na folha de pagamento e, segundo Lopes, saía diretamente do gabinete do secretário de Segurança. Todo mês era preciso retirar o dinheiro no gabinete do secretário, que então funcionava na Avenida Higienópolis.

"O trabalho no DOI era degradante. Não se ajustava a qualquer pessoa", afirmou, referindo-se aos policiais que atuavam diretamente nos interrogatórios, a chamada turma da "análise de informações".

O policial aposentado também fez referências ao apoio dado por grandes grupos financeiros e industriais à repressão. Entre outros, citou o caso, já bastante conhecido, do Grupo Ultragaz, que fornecia refeições para os agentes do DOI-Codi.

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ALN. Lopes foi chamado para depor porque foi um dos agentes do DOI-Codi que assinaram o auto de exibição e apreensão de armas e documentos que teriam sido encontrados com Arnaldo Cardoso Rocha, militante da Ação Libertadora Nacional morto em 1973. Segundo a versão oficial, ele teria sido morto durante um confronto com a polícia. Mas, de acordo com documentos que estão em posse da Comissão da Verdade, ele foi torturado e executado.

O auto de apreensão foi redigido quatro dias após o suposto tiroteio e as armas não foram apresentadas ao escrivão. Na segunda, ele disse que essa prática não era incomum. Também afirmou que não podia garantir que a assinatura era mesmo dele.

Diante da insistência de Iara Xavier Pereira, companheira de Arnaldo, para que o policial desse alguma informação, qualquer coisa que ajudasse a esclarecer as circunstância da morte, ele respondeu: "Lamento que eu não tenha convicção para falar mais."

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Iara, que estava na mesa e participou diretamente do interrogatório, disse ao Estado que considerou o depoimento do policial extremamente cauteloso e, alguns pontos, inverossímil. "Ele disse que nunca ouviu os gritos das pessoas torturadas no DOI-Codi. Isso é impossível. Todas as pessoas que passaram por lá disseram que ouviam."

Lopes disse que aceitou o chamado para depor porque deseja contribuir para o esclarecimento dos fatos ocorridos naquele período. A audiência desta terça foi a segunda realizada pela CNV e pela Comissão Rubens Paiva sobre oito casos de mortes de jovens integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) em São Paulo.

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