Tortura ainda é praticada no Brasil, diz cientista político

Para especialista, isso ocorre porque ainda não houve ruptura com a ditadura militar

Por Roldão Arruda
Atualização:

O cientista político Paulo Sérgio Pinheiro está à frente da coordenação de um seminário internacional sobre Comissão de Verdade, que será realizado pela USP no mês de outubro, em São Paulo. Embora o objetivo do encontro, com especialistas de diversas partes do mundo, seja avaliar os erros e acertos das comissões, existe a expectativa de que ela forneça uma espécie de roteiro para o governo federal por em andamento, a partir de 2010, uma comissão de verdade para apurar crimes de tortura, sequestro, morte e desaparecimento nos anos da ditadura militar - a exemplo do que ocorreu no Chile e na Argentina. Essa comissão também discutiria a Lei de Anistia, de 1979, que, na interpretação em vigor no País, teria atingido também os agentes do Estado que violaram direitos humanos.

 

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Pinheiro foi secretário de Direitos Humanos no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Hoje atua como relator da ONU e é um dos brasileiros mais conhecidos no exterior na área de direitos humanos. Já foi designado para o cargo de relator especial, em situações de graves tensões, no Burundi e em Mianmar. Também participou de comissões de verdade em Togo e no Timor Leste.

 

Na entrevista abaixo, ele afirma categoricamente que as torturas e as execuções sumárias continuam sendo praticadas no Brasil, apesar do Estado democrático. Isso ocorre, em sua opinião, porque ainda não houve uma ruptura com a ditadura militar. Ela virá quando os crimes forem esclarecidos. "Para haver uma ruptura dessas práticas, temos que promover o acerto de contas com o passado", afirma.

 

A seguir, os principais trechos da entrevista com o especialista:

 

O senhor é um dos coordenadores do seminário internacional sobre comissões de verdade, que vai acontecer em São Paulo em outubro. Sabe-se que um dos objetivos do seminário é refletir sobre as dificuldades do Brasil a respeito do esclarecimento de crimes de tortura, sequestro e desaparecimento de opositores do regime militar. Por que está interessado nesta questão?

A reconstituição da verdade histórica em relação aos crimes de lesa humanidade cometidos durante a ditadura militar, tais como a tortura, os sequestros, desaparecimentos e execuções arbitrárias, é uma questão que me preocupa há bastante tempo. O Brasil tem uma longa prática de não reconstituição da verdade. Um dos exemplos disso, já no período republicano, é o do Estado Novo. Nunca o Estado brasileiro se preocupou em investigar as responsabilidades dos torturadores naquele período, nem reconstituir a verdade dos milhares de condenados pela ditadura getulista. As poucas coisas que existem sobre as violações de direitos humanos na época são os livros Memórias do Cárcere, Subterrâneos da Liberdade e algumas outras memórias.

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E qual a razão para se fazer uma comissão de verdade agora? Não seria melhor por uma pedra sobre o passado e olhar para a frente?

A tortura e as execuções sumárias continuam sendo praticadas no Brasil, por maus policiais civis e militares, mesmo sob o regime democrático. Não existe em todo o mundo, nos países democráticos, uma polícia que mate tanto, comenta tantas execuções sumárias quanto a do Rio de Janeiro. Estou convencido de que se não houver um acerto de contas, com a reconstituição da verdade sobre os crimes da ditadura, isso vai continuar acontecendo.

 

Por quê?

Um dos ingredientes para que a tortura continue é que não a descolamos da ditadura de 1964. No Brasil sempre houve tortura. Entre 1946 e 1964 os negros, os afrodescendentes, os réus mais pobres foram torturados à vontade. A novidade após o golpe de 1964 é que retornamos às práticas do Estado Novo, quando os brancos, pessoas da classe média e das elites, também foram presas, massacradas, torturadas. Quando acaba a ditadura de 64, nossa classe, as elites param de ser torturadas, mas os que já eram torturados antes continuaram enfrentando as salas de tortura. Para haver uma ruptura dessas práticas, temos que promover algum acerto de contas com o passado, nem que seja só a reconstituição da verdade - o que é tarefa da academia, dos intelectuais, de instituições internacionais.

 

As comissões de verdade costumam levar à responsabilização dos autores dos crimes cometidos. O senhor não acha que no Brasil essa questão foi encerrada com a Lei da Anistia, trinta anos atrás? Afirma-se que a lei decorreu de um pacto visando a reconciliação nacional.

Que pacto? Quem pactuou com quem? Ninguém pactuou nada. O projeto de anistia ampla, geral e irrestrita foi derrubado no Congresso. A lei aprovada é uma lei de autoanistia, determinada pela ditadura militar e carimbada por um congresso ilegítimo, num estado de exceção. Não houve pacto. Não me lembro de ter sido consultado.

 

Parece que hoje há uma facilidade maior para exigir a apuração da verdade.

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Na verdade, a normativa internacional andou bastante nos últimos trinta anos. Existem julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra a autoanistia que são irretorquíveis. Também já existe uma boa jurisprudência sobre o assunto na Corte Europeia. Hoje está cada vez mais difícil sustentar que os crimes 'conexos' de que fala a Lei de Anistia de 1979 são os crimes cometidos por militares. Até onde eu entendo, essa conexão ocorre no interior dos crimes políticos. Os crimes perpetrados pelos funcionários do Estado não foram crimes políticos, mas sim crimes praticados por funcionários assalariados, agentes do Estado autoritário. O que vimos aqui, insisto, foi autoanistia.

 

Não teria sido uma anistia para os dois lados?

Essa interpretação já era patética em 1979. Hoje, diante da inserção plena do Brasil na normatividade internacional, ela também é anacrônica e escandalosa. Quais são os dois lados? Pelo que eu sei, de um lado estavam os criminosos, os agentes do Estado repressor. E do outro lado estavam os que cometiam crimes políticos, cuja compreensão está imensamente estabelecida na normativa internacional e nas leis brasileiras.

 

O caso está sendo analisado no Supremo Tribunal Federal. O que acha que pode acontecer?

Não tenho bola de cristal. Mas acho problemático o STF coonestar essa interpretação anacrônica da lei, validando a autoanistia. Se isso ocorrer, a necessidade do direito à verdade continua. O melhor seria se a suprema corte do País não validasse a autoanistia, deixando que as cortes, os tribunais civis decidissem. Na Argentina, é graças ao Judiciário civil que vários oficiais comandantes das juntas estão em cana. Mas não é só na Argentina. Em vários outros países o Judiciário tem sido mais atuante que no Brasil, levando os ditadores para a prisão. Aqui todos morreram em sua beatitude, todos intocáveis.

 

Toda vez que se fala na reconstituição de fatos, como o esclarecimento dos casos de opositores políticos cujos corpos nunca foram devolvidos às famílias, alega-se que não existem mais arquivos sobre o período.

Só quem acredita em histórias da carochinha é que pode acreditar que todos os documentos militares foram queimados. Se foram, quero ver as atas com as determinações para que fosse feita essa fogueira geral. Não é possível não ter nenhum documento entre 1964 e 1985. Os arquivos existem e seria excelente se as forças armadas fizessem um esforço para abri-los, pagando seu débito com o País.

 

Qual vantagem o País teria ao revirar esses arquivos?

Não é um problema de vantagem. O que está em primeiro lugar, a questão primordial, validada na normativa internacional, é o direito que os familiares dos mortos e desaparecidos tem à verdade. O que ocorreu com os seus familiares? Como morreram? Onde estão os corpos? Em segundo lugar, uma democracia como a brasileira não pode continuar convivendo com a não verdade, para não dizer a mentira, sobre o que ocorreu efetivamente entre 1964 e 1985, em termos de tortura, desaparecimentos, mortes, sequestros. A sociedade tem o direito à verdade. A verdade é um valor positivo em si. Pouco importa se vai trazer vantagem ou não.

 

O seminário que o senhor está ajudando a coordenar pode estimular a criação de uma comissão de verdade no Brasil?

O que nós pretendemos é que saiam dali ideias e propostas para um programa de reconstrução da verdade, com a participação acadêmica e sem os erros verificados nas dezenas de comissões de verdade que já surgiram no mundo. Não temos nenhuma pretensão de julgar pessoas. O nós queremos é que o Brasil deixe essa infantilidade de continuar convivendo com uma interpretação do passado que não corresponde, a essa altura do campeonato, com tudo que se sabe. Queremos saber o que houve com o pai do escritor Marcelo Rubens Paiva. Queremos reconstituir a história dos professores da USP que foram cassados e dos alunos assassinados pela ditadura.

 

O seminário pode preparar um esboço de projeto de comissão de verdade para o governo?

Não vamos preparar nenhum projeto. Não seria nosso papel. Podemos oferecer pistas e sugestões.

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