''Tínhamos de reagir'', diz Passarinho

Alerta contra radicalismo da esquerda foi o principal argumento de quem aprovou ato institucional em reunião no Rio

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Por Carlos Marchi
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Quando acabou a reunião que aprovou o AI-5, o ministro da Justiça, Luís Antonio da Gama e Silva, sentou-se numa mesa de carvalho, em outra sala, para, ao lado do locutor mais famoso do País, Alberto Curi, comunicar à Nação a triste novidade. Poderia ter simplificado sua fala, dizendo simplesmente: "A partir de hoje, nós, o governo militar, podemos fazer o que bem entendermos." Preferiu limitar-se a um breve intróito e deixar a leitura do édito dantesco para Curi, que, com fôlego, recitou os seis "considerandos" e os 12 artigos. Quando chegou ao fim, era noite fechada. Dos 25 presentes à reunião, 24 (o presidente Artur da Costa e Silva, seus 18 ministros e os chefes do SNI e do Estado-Maior das Forças Armadas e das três forças) aprovaram o ato; apenas o vice-presidente Pedro Aleixo foi contra. Quatro dos presentes, ainda vivos, explicaram seu voto a favor do AI-5. O ministro da Agricultura Ivo Arzua, um deles, lembra hoje que a reunião foi dominada por uma "máxima preocupação com os gravíssimos acontecimentos" da época. Arzua - que diz ter-se posicionado sempre "contra qualquer ditadura" - menciona "assaltos, depredações, incêndios". Na gravação do encontro no Palácio das Laranjeiras (veja trechos na página ao lado), o então ministro da Fazenda, Delfim Netto, defendeu mais mudanças "para que o País possa realizar o seu desenvolvimento" e opinou, sem meias medidas, que o AI-5 era muito pouco. Procurado agora, disse que o relato de sua participação é verdadeiro e ele não tem nada a acrescentar. ESCRÚPULOS DA HISTÓRIA "Às favas com os escrúpulos da consciência", discursou na ocasião o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, ao declarar o seu voto. "Não era mais possível dar respostas com democracia", afirmou esta semana ao Estado, com convicção, Passarinho. "De acordo com a opinião dominante no CSN, não havia outra alternativa para conter o surto revolucionário extremista", reiterou Arzua. Hoje, Passarinho se diz convencido de que a democracia passou a ser impraticável com 100 mil pessoas protestando na rua, numa referência à Passeata dos 100 mil, que deu gás à oposição. "Seria possível responder com democracia se a democracia fosse sólida", disse ele. A radicalização da esquerda, lembra Passarinho, levou as Forças Armadas a repensar a 2ª Seção, que antes estudava as possibilidades de guerra externa, em centro de estudos da guerra interna. Ali nasceria o embrião dos temíveis DOI-Codi, os órgãos encarregados da repressão. "Quando eles começaram a atacar a área militar, nós tínhamos de reagir", desabafa Passarinho. Arzua conta que à época estudou Constituições democráticas de outros países. Daí concluiu que os textos mais avançados "excluíam dispositivos perecíveis", que, no caso brasileiro, provocaram o rápido envelhecimento da Constituição, reformada pelos próprios militares apenas ano antes. "Tínhamos de evoluir para uma situação em que não poderíamos ter leniência", explica Passarinho. E prossegue: "Era fundamental, naquele momento, manter os dois pilares básicos que sustentam as Forças Armadas - disciplina e hierarquia, que estavam sendo minados." Ele lembra que, pouco antes do AI-5, enfrentou três greves com êxito. Numa delas, deflagrada pelos canavieiros de Pernambuco, contornada sem que fosse preciso efetuar uma só prisão, contou com a ajuda do bispo progressista d. Helder Câmara. A esquerda radical alimentou a ditadura, com ações muito pouco heróicas, enganos trágicos bem explorados pelo regime militar. Em julho, o Comando de Libertação Nacional-Colina (no qual, à época, militava a então estudante Dilma Rousseff, hoje ministra-chefe do Gabinete Civil do governo Lula) executou, no bairro da Gávea, no Rio, o major alemão Edward Otto von Westernhagen, bisonhamente confundido com o então major boliviano Gary Prado - que menos de um ano antes prendera Ernesto Che Guevara, na Bolívia -, também aluno da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Logo depois, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) executou o capitão americano Charles Chandler, para depois alardear que ele era da CIA. Nunca se provou que fosse. Em depoimento gravado que fez ao Estado, o militante Pedro Lobo de Oliveira, que dirigiu o Fusca bege do comando que fuzilou Chandler no bairro do Sumaré, São Paulo, se defendeu: "Quem descobriu que ele era da CIA foi o serviço de inteligência da VPR, infiltrado em todos os quartéis." Até junho de 1968 havia esperança de que o regime militar respondesse às manifestações da esquerda com soluções democráticas. Logo após a Passeata dos 100 mil, Costa e Silva aceitou receber uma comissão da passeata para negociar. Sem usar paletós, integravam-na os líderes estudantis Franklin Martins (hoje ministro da Comunicação Social do governo Lula) e Marcos Medeiros. Embora a passeata tivesse muito além do total de 10 mil universitários do Rio, a comissão apresentou só reivindicações estudantis. Na conversa, Medeiros chamou Costa e Silva de "professor" e a ironia foi mal recebida. Fechou-se a última porta. "Naquele momento, ter acenado com uma proposta de democracia teria tido enorme impacto, mas nós não fomos capazes", lamenta-se Jean Marc von der Weid, que assumiu a presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1969. Ainda havia, no contencioso da esquerda, contradições que não se resolviam. "A luta entre burguesia e proletariado não acaba com a extinção de um dos segmentos", observa ironicamente o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), ex-militante do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8). Só que a esquerda da época não era capaz de enxergar isso, diz. O governo militar tinha gordura para queimar. A economia apresentava sinais animadores. Em 1968, o País cresceria 9,8%, bateria o recorde na produção de veículos e cimento e registraria o mais alto nível de emprego formal da história recente. Mas a escalada política seria dramática: o jornalista Elio Gaspari escreveu que o ano registrou 85 denúncias de torturas, 21 assaltos a banco, 12 civis mortos em passeatas, 6 militares e 2 civis mortos pela nascente guerrilha e inúmeras depredações de teatros e atentados perpetrados pela direita terrorista. Daí para a frente, as coisas só iriam piorar. O ATO DO ARBÍTRIO Com o AI-5, o presidente podia: 1. Decretar recessos do Congresso, de Assembléias estaduais e de Câmaras de Vereadores sem maiores explicações e sem recurso à Justiça 2. Legislar sobre o que bem entendesse 3. Decretar a intervenção nos Estados e municípios, nomeando interventores 4. Cassar mandatos federais, estaduais e municipais, além de suspender direitos políticos de qualquer cidadão por 10 anos 5. Aplicar indiscriminadamente medidas de segurança tais como liberdade vigiada, proibição de freqüentar lugares, ter domicílio determinado 6. Suspender as garantias constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade de magistrados 7. Demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade empregados de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das Polícias Militares 8. Decretar estado de sítio, a seu próprio juízo 9. Decretar o confisco de bens dos que, supostamente, enriqueceram ilicitamente no exercício de cargo ou função pública 10. Manter suspensa a garantia de habeas-corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular

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