O Supremo Tribunal Federal (STF) terá de decidir "mais cedo ou mais tarde" sobre a punição a torturadores durante a ditadura militar e a revisão da Lei de Anistia. Quem prevê é o historiador Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e pesquisador dos anos de chumbo. No último dia 31, o ministro da Justiça, Tarso Genro, defendeu a punição aos torturadores e provocou a ira dos militares. Segundo Tarso, quem torturou cometeu crime comum, e não político, e deve estar sujeito ao Código Penal. Veja também: Áudio da entrevista Leia íntegra da Lei de Anistia Entenda o processo que resultou na Lei da Anistia Fico pondera, no entanto, que uma decisão do STF depende da mobilização da sociedade, como aconteceu com julgamentos recentes, como o da restrição das algemas e o da liberação dos candidatos "fichas-sujas" nas eleições. "Sempre que há clamor, o STF age com um pouco de agilidade", afirmou. Ainda segundo ele, o STF pode "consolidar uma interpretação, segundo a qual o crime de tortura não estaria abrangido pela Lei de Anistia". "E pode eventualmente não ser sobre um problema de tortura, como o processo sobre o coronel Brilhante Ustra", afirmou. O historiador se refere à ação que pretende declarar a responsabilidade civil do coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra pela morte do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, em 1971. Ustra comandava entre 1970 e 1974 o Departamento de Operações e Informações do Exército (DOI-Codi), em São Paulo, órgão de inteligência e repressão do governo militar. O historiador minimiza o risco de uma crise institucional com a declaração de Tarso e a reação dos militares da reserva, que convocaram um ato com a presença de altas patentes das Forças Armadas na ativa. "Isso será passageiro. Tenho a impressão que iniciativas do Clube Militar não tem mais impacto. Não deixa de transparecer um certo ridículo a reunião daqueles militares reformados", afirmou. Para Fico, mais grave é o temor de sucessivos governos em relação aos militares, desde a transição para o regime democrático. Indenizações e arquivos secretos Fico critica as indenizações "milionárias" pagas a militantes de esquerda, diz que são equivocadas e questiona os cálculos que levam a esses valores. "Não sou contra as indenizações de acordo com procedimentos usuais da Justiça comum, que inclusive tem tradição para fazer indenizações. Mas no Brasil se estabeleceu uma sistemática alheia à Justiça", afirmou. Ele se refere à Comissão de Anistia, instalada pelo Ministério da Justiça, que analisa os processos de reparação aos torturados na ditadura. "Discordo integralmente. As que tem valor mais alto são lamentáveis, como a do Ziraldo, que não teve grandes prejuízos com a ditadura", disse referindo-se a indenização de R$ 1 milhão concedida ao cartunista em abril deste ano, mais uma prestação mensal permanente de R$ 4,3 mil. "O valor pago a essas pessoas tidas de esquerda são injustos se comparados a valores pagos a pessoas desconhecidas como o da mãe do Edson Luís, que foi assassinado. É uma senhora pobre, que recebeu um valor insignificante", disse. Sobre a recusa do governo em não abrir arquivos dos anos de chumbo, Fico diz que há muita documentação já divulgada, mas que nem 10% do material chegou a ser pesquisado profissionalmente, por historiadores, tamanho o volume de informação do período. "Não quero dizer que não existam acervos não abertos. Há, sim, como no caso dos centros de informação dos antigos ministérios militares, da Marinha, Exército e Aeronáutica. Esses são os grandes acervos secretos que não foram divulgados. São os mais quentes, que teriam informações sobre a guerrilha do Araguaia", contou. Ainda segundo ele, há muito o que se estudar sobre a ditadura para que se entendam as contradições do período. "Existe uma memória muito mitificadora da ditadura militar, como se houvesse só mocinhos e bandidos. E a História é sempre um processo mais complexo. Muita gente da sociedade apoiou a ditadura. Não se pode dividir, por exemplo, a repressão da ditadura contra uma sociedade que resistia. É outro dos mitos, como se houvesse apenas dois lados, como se houvesse um lado bom outro, mau. A História tem coragem de enfrentar tanto as mitologias da direita quanto as da esquerda", afirmou.