‘Somos um país racista e homofóbico’

Entrevista - Margarida Pressburger, do Subcomitê de Prevenção da Tortura da ONU

PUBLICIDADE

Por Luciana Nunes Leal
Atualização:

A advogada Margarida Pressburger fez o curso de direito nos primeiros anos da ditadura militar, de abril de 1964 a dezembro de 1968. "Entrei com a ‘gloriosa’ e saí com o AI-5", brinca a carioca de 67 anos que há um mês assumiu, em Genebra, uma vaga no Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT), da Organização das Nações Unidas (ONU). É a primeira vez que o Brasil integra o subcomitê. Criado em 2002 para fiscalizar presídios e outras instituições de privação de liberdade suspeitas de práticas de tortura e maus tratos, ele também denuncia a aplicação de penas cruéis ou degradantes. Este ano, o subcomitê vai inspecionar três países: Ucrânia, Mali e Brasil. Margarida comemora a aprovação, pelo governo brasileiro, da proposta da ONU de investigar violações de direitos humanos no Irã. É uma crítica da decisão do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se recusou, em novembro de 2010, a apoiar resolução que pediu o fim de pena de apedrejamento naquele país. Para ela, Lula excedeu-se no "jogo de cintura" da política externa. No Brasil, a abertura dos arquivos da ditadura é uma de suas bandeiras. Indagada sobre a nota do Brasil em direitos humanos, foi curta e direta: "De um a dez? Um. Somos um país homofóbico, racista."Qual será sua primeira missão como integrante do Subcomitê de Prevenção da Tortura? Estou indo para a Ucrânia no dia 14 de maio. Lá vamos fazer inspeções e visitas a locais de privação de liberdade. Este ano três países serão visitados: Ucrânia, Mali e Brasil. No Brasil eu não me envolvo. Os três países sabem, não é mistério. O mistério é só sobre as datas, que são mantidas por enquanto em sigilo, com exceção da Ucrânia, que já foi comunicada. O que vai ser investigado na visita à Ucrânia? A denúncia é a mesma em todo o mundo: tortura em locais de privação de liberdade. Torturas físicas em delegacias, presídios, carceragens. Também vamos a asilos, manicômios, abrigos. Enfim, em todos os lugares onde existe algum tipo de tortura, seja física ou psicológica. Eu já ouvi de agentes brasileiros: "Se não torturar, ninguém fala nada." Essa é a mentalidade. O presidente (dos EUA, George W.) Bush, na sua biografia, diz que salvou a vida de milhares de cidadãos norte-americanos porque utilizou a tortura. É a cultura da tortura. A gente tem de entender que cultura não é tortura. Mahmoud Ahmadinejad (presidente do Irã) acha normal apedrejar uma mulher até a morte. A gente aqui não acha. A presidente Dilma não aprovou o procedimento do presidente Lula ao se abster na ONU. Qual o significado da posição do Brasil de aprovar uma investigação sobre violação de direitos humanos no Irã? O rumo mudou, isso deu para perceber no primeiro dia do governo Dilma, que, ao contrário do que alguns pregavam, não é a continuação do governo Lula. Vai ser o governo Dilma, vai deixar a marca dela. E Dilma, ainda mais por ter sido uma ativista política, uma "subversiva" que sofreu os piores tipos de tortura imagináveis, não vai ter aquele jogo de cintura que o Lula teve. Na sua avaliação, Lula teve jogo de cintura em excesso? Lula para mim é um grande estadista. Tem aquela história de querer ficar bem com todo mundo. Até mesmo a visita, o beija-mão com Ahmadinejad, não é a característica de Dilma e ela mostrou isso na semana passada. O Lula era um pouquinho fanfarrão. Largava os assuntos mais sérios nas mãos de assessores, inclusive a Dilma. A sra. acha que o ex-presidente foi muito permissivo em relação a direitos humanos? Não tenho a menor dúvida de que o presidente jogou o Brasil no panorama mundial. É a personalidade dele. Ele achava que estava trabalhando em cima de direitos humanos. Teve um grande ministro, Paulo Vannuchi, que só não fez mais porque tolheram. O Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) é uma obra-prima, pela forma como foi originalmente redigido. Vannuchi sofreu pressão de todos os lados, da Igreja à bancada retrógrada do Congresso. Teve de alterar a questão do aborto, voltar um pouco atrás na Comissão da Verdade. Acho que agora a Dilma vai recuperar esse tempo. A senhora defende a punição dos responsáveis por torturas no regime militar?

O Supremo Tribunal Federal decidiu que a Lei da Anistia era bilateral. Então, não vejo como possa surgir punição, infelizmente. A Argentina tem 486 torturadores presos e recentemente prendeu um ancião. Não é porque é um velhinho ou uma velhinha que ficou bonzinho. Entendo que tortura é crime inafiançável. Meu irmão foi barbaramente torturado. O Lula não foi torturado, não teve parentes torturados. Ele sentiu a ditadura, foi perseguido, mas nunca foi torturado. Com a Dilma doeu e doeu muito. Mesmo que os torturadores não possam ser condenados, as famílias têm direito. Eu tenho direito de saber quem fez isso com meu irmão. A senhora tem orientação do governo para a atuação na ONU? Não, minha atuação é totalmente independente. Sou representante do Brasil, não do governo. No subcomitê, posso até desagradar à presidente Dilma, à ministra Maria do Rosário (da Secretaria Especial de Direitos Humanos). Qual será o foco do subcomitê na visita ao Brasil? Serão os locais de privação de liberdade. Deverá vir uma pré-comissão em maio e eles vão definir. Querem visitar alguma coisa no Norte e outra no Sul. Há presídios em que você tem celas de 12 pessoas nos quais ficam 30 ou 40. Um se encosta na parede e os outros encostam no ombro e vão dormindo, em pé. Durante o banho de sol, eles têm de ir sem sandália havaiana, porque acham que é perigoso. Nunca consegui descobrir qual é a letalidade da sandália havaiana. Os relatórios do subcomitê podem produzir algum efeito concreto? Quando conversei com a ministra Maria do Rosário sobre a vinda do SPT, ela disse "ainda bem". Se o SPT fizer um relatório dizendo que viu, alguém vai chamar a ONU de mentirosa? É como a sentença do Araguaia. A Corte Interamericana disse que as famílias têm de receber seus desaparecidos. A presidente Dilma vai cumprir a sentença da Corte Interamericana. A sra. tem certeza? Se ela não cumprir, será uma decepção muito grande. Mas acho que não vou me decepcionar. Em relação aos direitos humanos, em que patamar o Brasil está? De um a dez? Um. Somos um país homofóbico, racista. Enquanto você não tiver a mentalidade de colocar nas escolas aulas de não discriminação... Direitos humanos têm de ser ensinados no jardim de infância. Ainda temos um chão muito grande para andar.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.