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Socióloga prepara dicionário que retrata o País da 1ª República

Para Alzira Alves de Abreu traz, 'a 1ª República foi um período riquíssimo'

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Por Redação
Atualização:

Ao fim de três anos de pesquisa sobre as primeiras quatro décadas da República, a socióloga Alzira Alves de Abreu, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), é categórica: “O Brasil não começou em 1930”. Alzira se volta contra o termo República Velha para designar o período que começa em 1889, com a queda do imperador D. Pedro II, e se encerra com o movimento que levou Getúlio Vargas à Presidência da República. “Industrialização, sindicatos, movimento feminista, tudo isso começou muito antes de 30”, diz.

 

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No fim do ano passado, Alzira concluiu a organização do Dicionário Histórico-Biográfico da Primeira República, que se soma às duas edições do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, sobre o período de 1930 até a atualidade. Encerrada a etapa de pesquisa e redação dos 2.317 verbetes, sendo 2.078 biográficos e 239 temáticos, a professora está em busca de recursos para a publicação impressa e em e-books das 7.714 páginas, que trazem também reproduções de uma rica variedade de charges e caricaturas, encontradas nos acervos da Casa de Rui Barbosa e do Museu Histórico Nacional. A primeira etapa do trabalho foi realizada com R$ 400 mil do Fundo de Financiamento de Estudos e Projetos (Finep).

 

Além de informações sobre governantes, parlamentares, política e economia; Alzira fez uma seleção de personalidades e temas que, segundo ela, mostram que “a Primeira República foi um período riquíssimo”. Entre os verbetes biográficos, estão a feminista Berta Lutz e a caricaturista Nair de Teffé, mulher do presidente Hermes da Fonseca, avançada para os primeiros anos do século 20.

A pesquisa e os textos ficaram a cargo da equipe do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da FGV, e de especialistas convidados por Alzira. Coube ao ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco o verbete sobre o Encilhamento, a política econômica do ministro da Fazenda Rui Barbosa que, a fim de estimular a industrialização, baseou-se na emissão de papel-moeda, mas resultou em inflação e especulação financeira. O ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer ficou encarregado da politica externa. “O Dicionário é um caminho para criar novas pesquisas, repensar esse período. Não existe esta história de República Velha”, provoca Alzira.

 

As primeiras décadas da República costumam ser lembradas pelo domínio das oligarquias, o revezamento de São Paulo e Minas Gerais no poder, os “coronéis” controlando o voto nas chamadas eleições bico de pena. O que a senhora destaca desse período?A Primeira República - que vai de 1889, quando o golpe militar derrubou o imperador D. Pedro II, até 1930 - é vista de forma muito negativa, com a política do café com leite, tudo isso. É como se tudo de bom começasse em 1930. Os pesquisadores e historiadores começam a explicar a industrialização, o sistema sindical, a criação da legislação trabalhista, tudo no pós 30. Mas, quando você vai levantar, vê que sindicatos e movimentos sociais começaram muito antes. Ministério Público, Defensoria Pública, Código Civil surgiram na Primeira República. Com o movimento feminista, as mulheres começam a reivindicar participação política. É um período riquíssimo. Eu fiquei impressionada.

 

No Dicionário, há grande destaque a jornais e revistas da época. Por quê?Jornais que existem até hoje foram criados ou tiveram grande sucesso na Primeira República. O Estado de S. Paulo se moderniza em 1909, compra máquinas, aumenta a tiragem. As revistas usavam muito a caricatura e a charge. Era assim que chegavam à população, em grande parte analfabeta. As pessoas compreendiam a crítica pelo desenho. É o período áureo da caricatura. Havia jornais anarquistas, socialistas. Mas eu também lembro que havia muitos decepcionados com a República e muita crítica. Juntam os monarquistas, que acusam a República de corrupta e que não faz nada pelo País, e os desiludidos com a República. Isso sai muito nos jornais. O Rio de Janeiro dos anos 20 chegou a ter 200 jornais.

 

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Havia liberdade para que essas publicações atuassem de maneira tão crítica?Houve, no início da República, a chamada Lei Rolha, uma tentativa de controlar a imprensa (o decreto que previa julgamento sumário de abusos da manifestação de pensamento, de dezembro de 1889, foi revogado no ano seguinte). Mas depois a lei caiu e a imprensa tinha liberdade. Claro que havia tentativas de inibir, de controlar, os jornais dependiam muito do governo. Mas sem dúvida havia uma liberdade, sim. Vamos lembrar o que vivemos depois, em 1937 (ano do início do Estado Novo, que durou até 1945 e impôs severa censura à imprensa).

Por que a senhora rejeita o termo República Velha?Eu comecei a questionar: que história é essa de República Velha? É a Primeira República. Fala-se como se o Brasil começasse em 1930. Não é nada disso. Não deixo ninguém aqui falar em República Velha. A gente tem que repensar isso. A industrialização é anterior a 1930. Os anos 1920 são riquíssimos. O movimento sindical operário, principalmente em São Paulo, era muito organizado. O Dicionário dá informações para você continuar, criar novas pesquisas, renovar o conhecimento do período.

 

E houve a Primeira Guerra Mundial no meio do caminho. Que efeitos teve para o País?Até o fim da Primeira Guerra Mundial, o Brasil tinha como modelo a Europa, em especial a França. A partir do fim da Primeira Guerra, vira para os Estados Unidos. Você passa a ter várias influências, inclusive na imprensa. Tudo isso acontece na Primeira República, são anos importantíssimos. Com o modelo americano, começa a se valorizar o Estado como instituição. A imprensa começa a ser mais objetiva, a deixar aquela linguagem muito difícil, agressiva. Começa a ser mais noticiosa. Nada mudou de repente, mas foi o começo. A Academia Brasileira de Letras, a Associação Brasileira de Imprensa surgiram na Primeira República. O Partido Comunista surgiu em 1922.

 

Outro ponto importante é a separação da Igreja e do Estado, que se dá com o fim da monarquia.Isso teve consequências objetivas?A Igreja se reformula, começa a investir em escolas em todo o Brasil. Colégios católicos são criados e a Igreja se recupera dessa perda dos privilégios que tinha na monarquia. Outro ponto importante: todas as nossas fronteiras são traçadas legalmente nesse período. Antes havia muitas lutas entre os vários países vizinhos. Eu olho isso tudo e pergunto: que história é essa de República Velha? Claro que depois muitas coisas foram reformuladas, mas dizer que tudo é negativo nesse período, em que nada se fez pelo País... Foi um período de grande estabilidade institucional. Não se depôs nenhum presidente. Todos foram eleitos, tomaram posse.

 

Mas houve muitas revoltas, movimentos organizados como o tenentismo. Mesmo assim pode-se falar em estabilidade?Tinha muita revolta, crise econômica, a gente não ignora. Mas institucionalmente foi um período rico. Veja a Semana de Arte Moderna, em 1922. Não vamos negar que 30 é importantíssimo, mas não quer dizer que não teve nada antes.

 

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