SNI barrou expurgos na USP, mostra comissão

Grupo acha documentos de assessoria da reitoria, que queria aprofundar cassações

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Por Marcelo Godoy
4 min de leitura

O expurgo de professores e alunos da Universidade de São Paulo (USP) no regime militar só não foi maior porque em duas oportunidades os pedidos de novas cassações foram paralisados no Serviço Nacional de Informações (SNI). Documentos encontrados pela Comissão da Verdade da USP mostram que o órgão de informações impediu que denúncias feitas por integrantes da universidade e pela Assessoria Especial de Segurança e Informações (AESI), ligada à reitoria da USP, atingissem novos alvos, suspeitos de oposição à ditadura.

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Mais de uma dezena de professores estavam entre os suspeitos, entre os quais Eurípides Simões de Paula, Fernando Novais e Eduardo D’Oliveira França. Os responsáveis pelo filtro ideológico na universidade também queriam uma devassa na Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp), onde suspeitavam do zoólogo Paulo Vanzolini, do físico Oscar Sala e do médico e ex-reitor da USP Antonio Barros de Ulhôa Cintra. Fundamental para essas investidas, a AESI começou a funcionar nos anos 1970, instituída pelo reitor Miguel Reale. Era ela quem fazia, segundo o relatório da comissão, “a triagem ideológica de alunos, professores e funcionários”.

O sociólogo Fernando Henrique Cardoso defende tese na USP, São Paulo, SP, 1963. Foto: Domício Pinheiro/Estadão

A assessoria produziu 2.895 documentos entre 1973 e 1979 enviados ao Departamento de Ordem Pública e Social (Dops), ao 2.º Exército e ao SNI. O número representa um aumento das informações produzidas então pela universidade sobre investigações internas. De fato, os arquivos do Dops registram 253 documentos enviados pela USP para o departamento entre 1948 e 1973, uma média de 16 por ano. Após a criação da AESI, esse número saltou para uma média de 413 por ano.

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“A criação da AESI gerou uma prática de vigilância com vistas ao controle ideológico da comunidade acadêmica, dentro de um sistema de informações organizado e centralizado do qual a USP fazia parte”, disse a professora Janice Theodoro da Silva, do Departamento de História da USP. Ela presidiu a comissão, cujo relatório tem dez volumes e foi entregue anteontem ao reitor Vahan Agopyan.SUBVERSÃO Exemplo desse controle é o documento enviado em 13 de novembro de 1975 ao SNI, no qual a AESI afirmava que a Fapesp estava sendo usada em “aprimoramento subversivo de alto nível pelo ex-diretor científico Oscar Sala”.

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Entre os “fatos” apontados pela AESI estavam o apoio da Fapesp à Sociedade Brasileira de Progresso da Ciência, a nomeação de “infiltrados”, o dinheiro dado a pesquisas “para deturpar fatos históricos” e “desmerecer o trabalho do governo revolucionário”. Para tanto, Sala disporia de “400 assessores científicos secretos para dinamizar o trabalho de infiltração marxista no País”. E apontava como idealizadores desse plano Vanzolini e Ulhôa Cintra.

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O SNI respondeu ao ofício dizendo que acusar Sala de aproveitar-se do cargo “é expressar-se de forma tendenciosa e pouco verdadeira”. O serviço de informações dizia que a AESI trazia sobre “educadores da USP dados nem sempre verdadeiros”. Para o SNI, o documento da AESI “insere-se num contexto de luta pelo controle administrativo da Fapesp e do manejo de suas vultosas verbas”. Por fim, os agentes concluíam: “Não é, em essência, documento válido e merecedor de crédito”.

Em outro caso, a comissão traz o relato do historiador Boris Fausto sobre como brigas internas na USP quase levaram a outra leva de cassações em 1972. Ali também tudo foi parar no SNI, onde o pedido de expurgo morreu em uma gaveta.

QUEDA O artífice da AESI era Krikor Tcherkesian, funcionário nomeado por Reale e mantido pelo reitor Orlando Marques de Paiva (1973-1977). Tcherkesian, que se apresentava como amigo do cantor João Gilberto, visitava frequentemente o Dops. Foi ele quem comandou a ofensiva contra a Fapesp. Acabou enredado em uma trama na qual ele foi acusado pelo SNI de "ação de corrupção e intimidação de diretores e professores de faculdades. Acabaria afastado em março de 1976, após pressão do general Dilermando Gomes Monteiro, que assumira o 2.º Exército em substituição ao general Ednardo D'Ávila Mello, depois da morte do metalúrgico Manoel Fiel Filho, nas dependências do Destacamento de Operações de Informações (DOI). O Estado procurou Tcherkesian, mas não conseguiu localizá-lo.

PESQUISA RECUPERA DOCUMENTOS QUE FORAM QUEIMADOS A Comissão da Verdade da USP recuperou cópias de milhares de documentos que haviam sido queimados em 1982. Os papéis estavam no arquivo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Eles mostram que, dos 434 mortos na ditadura, 47 tinham relação com a universidade – 39 alunos e ex-alunos, seis professores e dois funcionários. 

A Comissão ouviu professores e alunos perseguidos. A USP foi atingida desde 1964 com o afastamento de professores como os sociólogos Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes, o físico Mário Schenberg, os arquitetos João Batista Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha, os médicos Luiz Hildebrando Pereira da Silva e Isaías Raw, a historiadora Emília Viotti da Costa e Caio Prado Junior e o filósofo José Arthur Gianotti.

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Entre os documentos achados há listas de professores “ideologicamente suspeitos” cuja contratação foi vetada por reitores. Esse foi o caso dos arquitetos Ricardo Ohtake – ato do reitor Orlando Marques de Paiva – e do arquiteto Décio Tozzi, barrado por dois reitores – Miguel Reale, em 1972, e Salim Simão, em 1977. “Isso destruiu minha carreira acadêmica”, contou Tozzi, que projetou o parque Villa Lobos e se tornou professor da USP em 1982. O jurista Miguel Reale Junior diz que seu pai evitou perseguições maiores na USP quando foi reitor. O relatório, no entanto, mostra que foi de Reale a iniciativa de criar a AESI - a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo, não tinha esse órgão.

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