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SETOR CULTURAL HOSTIL É OBSTÁCULO DE GESTÃO

Difícil quem não pensou ou cantarolou um trecho de Apesar de Você ao saber que Chico Buarque era parte da comitiva que acompanhava a agora ex-presidente Dilma Rousseff em seu derradeiro depoimento. Além de um ato de solidariedade pessoal, a presença do cantor e compositor no Senado carregou, simbolicamente, a bandeira de uma resistência que o governo de Michel Temer ainda não conseguiu dobrar: a dos artistas e produtores culturais.

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Por Gilberto Amendola
Atualização:

O passo torto desse relacionamento foi dado logo após Temer assumir o governo interino, em maio, e fundir o Ministério da Cultura com a Educação (na prática, extinguindo-o). A atitude causou uma reação em cadeia que culminou com a ocupação de diversos equipamentos culturais. Em poucos dias, Temer voltaria atrás – recriando o MinC.

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O recuo não serviu para pavimentar uma nova relação de confiança. No período que se seguiu, aumentou a participação de artistas nas manifestações contra o impeachment. Os mais afoitos defensores do novo governo chegaram a limitar a luta da classe artística a uma briga pela manutenção da Lei Rouanet. Não faltou quem apelasse para um axioma capenga: “artista = vagabundo”.

Mais exemplos de resistência pipocaram. O escritor Raduan Nassar quebrou o seu silêncio mítico (e quase místico) para defender o governo Dilma e acusar o “golpe”. Do cinema, talvez, tenha saído a reação mais forte. Em Cannes, o elenco de Aquarius fez um protesto durante um dos mais importantes festivais de cinema do mundo. O governo nega, mas a classificação do longa de Kléber Mendonça como apropriado para maiores de 18 anos soou como uma espécie de “vingança”.

No último capítulo desse embate (ao menos por enquanto), diversos diretores retiraram seus filmes da disputa pela indicação brasileira ao Oscar.

Com o fim da interinidade, a relação entre agentes culturais e o governo Temer pode ser construída? Existem canais para um diálogo? Ou essa relação já estaria definitivamente contaminada? O escritor Marcelo Rubens Paiva é quem dá o tom desse debate. “Este governo é oriundo de uma aliança com um movimento conservador, extremista e reacionário, que chama atriz de ‘puta’, artista de vagabundo, de mamar na teta do Estado.” O movimento Ocupa MinC segue a mesma linha e é taxativo e seco: “Não negociamos com governo golpista”.

Função. O dramaturgo Mario Viana também criticou a postura do novo governo, mas disse querer deixar uma porta aberta. “Diálogo tem de haver sempre. Sou contra fechar portas, mesmo que do outro lado esteja alguém em quem você não votou ou não queria ali. E não adianta dizer que ‘não reconhece o governo golpista’. É preciso reconhecer, sim, saber direitinho onde ele está e como age”, afirmou. “Agora, manter diálogo não significa abrir mão da visão crítica. Devemos manter aceso nosso ponto de vista crítico, ácido e irônico. A função do artista é cutucar o poder, a sociedade, a própria arte.”

A cineasta Tata Amaral comentou a ascendência dos artistas nesse processo de resistência: “Acho que os artistas, com sua sensibilidade e consciência, acabam funcionando como uma antena parabólica de uma cultura. Isso acontece em todos os lugares, países, civilizações. No Brasil, a classe artística, em sua maioria, tem se posicionado contra o golpe parlamentar que tirou do poder um governo legitimamente eleito”.

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Por e-mail, o ministro da Cultura, Marcelo Calero, afirmou que “o Ministério da Cultura tem uma agenda e conta com a contribuição da classe artística”. “Estamos dialogando com interlocutores da classe artística desde a posse, há quase cem dias. Neste tempo, tivemos encontros com representantes de todos os segmentos da cultura”, declarou o ministro.

Sobre a credibilidade do governo em relação a artistas e agentes culturais, Calero disse: “O Ministério da Cultura está disposto a dialogar com a classe artística, apoiando e fomentando o desenvolvimento da arte, a pesquisa de linguagem e a cultura. Vamos recuperar a credibilidade para que os artistas voltem a participar de editais e contribuir com a construção de políticas públicas efetivas”.