‘Sem políticas efetivas, vamos cair num atoleiro’, diz ministro do STJ

Luis Felipe Salomão cobra ações para desafogar trabalho no Judiciário; pesquisa mostra o sentimento de juízes

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Por Luiz Maklouf Carvalho
Atualização:
O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luis Felipe Salomão Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

O ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), disse em entrevista ao Estado que os juízes não podem ignorar, em suas sentenças, decisões consolidadas pelos tribunais superiores em jurisprudência, súmulas e precedentes vinculantes. “É ruim que isso esteja acontecendo”, afirmou. “Só serve para aumentar o enxame de processos que já se acumula.”

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Quem informa que a prática está acontecendo é a pesquisa mais abrangente já feita sobre juízes brasileiros – 3.851 deles responderam a detalhadas 200 questões –, coordenada pelo próprio Luis Felipe Salomão. Em um dos quesitos, 52% dos juízes da primeira instância afirmaram que não levam a jurisprudência em conta na hora de decidir, e 55% do segundo grau disseram que não seguem necessariamente súmulas e precedentes que podem se usadas para vincular decisões.

“Está errado o juiz não seguir precedente”, disse o ministro na entrevista feita na tarde do último dia 19, em seu gabinete. “A partir do novo Código de Processo Civil, nós passamos a ter uma nova realidade, que é a cultura dos precedentes, porque confere rapidez” (a questão foi abordada em editorial do Estado no dia 18).

A pesquisa em que Salomão atuou como coordenador chama-se “Quem somos – A magistratura que queremos”, dos sociólogos Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho e Marcelo Baumann Burgos, patrocinada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), com o apoio da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Recentemente divulgada, é o mais abrangente levantamento sobre os juízes brasileiros. Quase quatro mil deles responderam a detalhadas duas centenas de perguntas sobre si próprios, o direito e o sistema de justiça. A íntegra (392 páginas) está no site da AMB.

“Em 1988 o Brasil tinha 350 mil novos processos por ano e hoje tem 30 milhões”, disse o ministro do STJ. “São 30 milhões de novos processos por ano. Ou nós agora traçamos políticas públicas efetivas para o Judiciário, ou vamos cair num atoleiro de onde o Judiciário não se levanta mais.”

O “agora”, que estimula a renovada esperança do ministro – 56 anos, há quase 11 no STJ –, é o resultado da pesquisa. Comparado com outra, da mesma equipe, há 20 anos, cresce ainda mais de importância pelo parâmetro da comparação. A seguir, os principais trechos da entrevista:

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Para que servem, efetivamente, pesquisas como essa que o sr. coordenou? A judicialização da vida, que é um fato, representa hoje quase 80 milhões de processos em tramitação. Dá um processo para quase dois habitantes, uma das maiores médias de judicialização do mundo. São 30 milhões de novos processos por ano. Ou nós agora traçamos políticas públicas efetivas para o Judiciário, ou nós vamos cair num atoleiro de onde o Judiciário não se levanta mais. O juiz está na linha de frente do contencioso judicial. Entender um pouco melhor essa corporação é relevante para traçar políticas públicas.

De que políticas públicas o sr. está falando? Quanto à segurança do juiz, por exemplo, a grande maioria entendeu que, quando ele atua na área penal, principalmente se ele atua enfrentando poderosos, o melhor, para maior segurança, é fazer julgamentos colegiados, mesmo no primeiro grau, porque aí dispersa, não é um só juiz que assina a sentença, é um colegiado. Como as forças-tarefa do Ministério Público, por exemplo.

O que disseram sobre a utilização da videoconferência? A ampla maioria, quase 80%, diz que funciona, e que pode ser espalhada para outras atividades, e não só no interrogatório do preso.

Qual é a maior preocupação dos juízes? A efetividade, tornar a decisão eficaz. Aquela história de “ganha mas não leva” incomoda muito a magistratura. Outra grande preocupação é com a celeridade. Eles propõem algumas medidas processuais  que podem ser adotadas, como, por exemplo, não dar efeito suspensivo  aos recursos.

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Essas e muitas outras sugestões de melhorias vêm sendo dadas ao longo dos anos, mas não têm avançado no ritmo necessário. Esbarram no  processo legislativo. Tem interesses corporativos, profissionais, que são fortes para poder impedir a tramitação disso. Em inúmeras situações tentou-se diminuir a quantidade de recursos.  Já tem proposta de emenda constitucional em andamento. E não votam. 

Quais são as maiores reclamações dos juízes? A pesquisa constata que há excesso de trabalho. E que eles querem uma melhor distribuição de recursos  dentro do Judiciário. Os recursos têm de ser melhor divididos entre a primeira e a segunda instância.  Então, há uma reclamação constante para que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) atue, equilibrando essa distribuição.

Qual é a preocupação com esse crescimento acentuado de processos? Em primeiro lugar, a disseminação do que eles chamam de uma cultura do litígio. Segundo, a ineficiência das agências reguladoras.

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Quais delas? Todas. Nos outros países onde existe agência reguladora, no nosso modelo, elas funcionam na prevenção de litígios, exatamente para não judicializar. No Brasil, elas não funcionam. Daí, existe o que nós chamamos de uso predatório do Judiciário.

O que mostra a pesquisa sobre os próprios juízes? Que o Judiciário está ficando mais maduro, em termos da idade. Esse amadurecimento é que leva a responder que a dimensão institucional da magistratura é a de resguardar a democracia como valor fundamental. Isso é a cara de uma corporação. E, ao mesmo tempo, você vê que tem uma magistratura nova querendo entrar pela porta.

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Onde a pesquisa identifica essa questão? Quando o juiz diz que quer simplificar a linguagem, que a linguagem tem de ser compreensível, que o cidadão tem de sair da audiência sabendo se ganhou ou perdeu. Outra constatação de que o novo quer entrar é que 80% dos juízes estão na rede social. É um dado relevante.

O que dizem eles sobre a relação com a imprensa? São dois parâmetros. 75% acham que a divulgação pela mídia é fundamental para a transparência. Mas 58,2% entendem como dificuldade a forma negativa com que as imprensa trata, em geral, a atividade dos magistrados.

Qual é a diferença expressiva com a pesquisa realizada 20 anos atrás? A grande discussão, há 20 anos, era que o Poder Judiciário era opaco, era uma caixa preta, não se tinha acesso a nada. Hoje, é exatamente o oposto. Se fala em autocontenção do Judiciário, que o juiz está ultrapassando os limites, falando demais, e ao mesmo tempo está decidindo questões que ele não deveria decidir, que é matéria afeta a outros poderes.

Tem havido abuso desse ativismo judicial? A própria pesquisa revela que sim. O magistrado reconhece que o Judiciário está indo além do que deveria ir. Uma resposta com 69% diz que o Poder Judiciário não é neutro, e que o magistrado deve considerar as consequências da decisão que vai tomar, com o cuidado de não ultrapassar sua área de atuação. Quase 70% no primeiro grau, e quase 80% no segundo, assinalaram a importância da preservação da dimensão institucional do Judiciário.

O que eles contam sobre a rotina, o dia a dia da atividade? Dizem, fundamentalmente, que despacham os processos e atendem os advogados. Dedicam pouco tempo para pesquisa, e praticamente tempo nenhum para precedentes judiciais. A maioria responde que acha que não deve seguir precedente judicial. Isso é um dado ruim, porque, ao mesmo tempo em que ele prioriza a celeridade, e simplesmente não dá bola aos precedentes, é um equívoco, porque a decisão dele vai subir e o tribunal vai reformar.

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E que política pública se pode aplicar aí? O CNJ tem de conscientizar, fazer o precedente chegar nesta ponta. Esse é um ponto, na formação do juiz, que nós temos que cuidar. É importantíssimo seguir os precedentes. Ainda mais agora, que nós temos regra expressa. Fala-se hoje num direito dos precedentes – que são os artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil.

Como o CNJ pode ajudar a resolver isso? Não através de disciplina, porque o juiz tem autonomia para decidir. Mas é um processo de mudança cultural, que não vem da noite para o dia. Você tem de ir provando para o juiz que, se ele der uma sentença contrária ao precedente, vai atrasar mais ainda, vai ter que voltar.

O que diz a pesquisa sobre o preparo intelectual dos juízes? 70% dos juízes fizeram especialização, mestrado ou doutorado. Se comparar com o número anterior, cresceu. Ou seja: os juízes estão ficando mais especializados, é uma burocracia tecnicamente mais preparada.

Melhorou, então? Pela leitura desses indicativos, a magistratura brasileira vem melhorando. Há um choque cultural entre o novo e as práticas conservadoras. Nesse choque, a tendência é o novo ir ganhando, com práticas que priorizem a celeridade, a rapidez, a resolução, a efetividade.

O que ela apontou como ruim? A pesquisa apontou um certo desgaste na saúde do magistrado. A maioria, 97%, reconhece que os juízes estão muito mais estressados do que no passado. E que casos de depressão, síndrome do pânico, crise de ansiedade e até suicídio são mais frequentes do que há dez anos. É assustador. Outra coisa muito ruim é o ingresso muito pequeno de negros.

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