Riocentro: 40 anos depois, caso segue sem resolução

Quatro militares acusados de envolvimento com o atentado progrediram na carreira e nenhum sofreu punição; atentado que marcou início do fim da ditadura

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Por André Shalders, Vinícius Valfré e Rafael Moraes Moura
5 min de leitura

BRASÍLIA – Há exatos quarenta anos, um atentado terrorista praticado por agentes do Estado brasileiro contra civis continua impune, e tudo indica que assim ficará. Na noite de 30 de abril de 1981, uma bomba explodiu em um Puma no estacionamento do Riocentro, em Jacarepaguá, no Rio. Naquele momento, a cantora Elba Ramalho se apresentava no palco do show de 1º de maio para uma plateia de 20 mil pessoas.

O atentado foi o mais emblemático de uma série de explosões provocadas por agentes da repressão, insatisfeitos com o processo de abertura política do País. O Ministério Público Federal (MPF) apontou a participação de 15 pessoas, em 2014, na investigação mais abrangente já feita sobre o caso. Desses, seis foram denunciados à Justiça e apenas cinco estão vivos – quatro militares e um ex-delegado de Polícia Civil.

Os quatro militares sobreviventes progrediram em suas carreiras no Exército e hoje vivem de modo confortável. Nenhum deles sofreu qualquer punição, exceto a de passar à história como participantes de uma trapalhada, que ajudou a desmoralizar a ditadura e encaminhou o seu fim.

Dois dos militares acusados pelo MPF são hoje generais reformados do Exército: Nilton de Albuquerque Cerqueira e Newton Araújo de Oliveira e Cruz. Hoje na reserva, Cerqueira era então coronel do Exército e comandante da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. De acordo com a denúncia, ele agiu para impedir que a força policial estivesse no local na hora do atentado.

Newton Cruz, por sua vez, já era general e chefiava a poderosa Agência Central do SNI, o Serviço Nacional de Informações. Soube do atentado de antemão e autorizou que fosse adiante, segundo o Minstério Público Federal.

Ato. Uma bomba explodiu dentro de um Puma durante show no estacionamento do Riocentro em celebração do 1º de Maio Foto: Estadão / Arquivo

Wilson Machado, apontado pelo MPF como um dos executores do ataque ao Riocentro, continua vivo. A denúncia afirma que ele estava no volante do Puma GTE quando a bomba explodiu no banco do carona, no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário. À época, Wilson era capitão do Exército. Nos anos seguintes, chegou ao posto de coronel.

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O militar Divany Carvalho Barros, por sua vez, passou à inatividade com a patente de major. Na época, era capitão do Exército, na Seção de Operações do DOI do Rio. Foi até o Puma GTE naquela noite, segundo a denúncia, por ordem de Julio Miguel Molinas Dias, o “Dr. Fernando”, para remover do carro provas que pudessem ligar os militares ao ocorrido. Ao MPF, Divany contou que recolheu do Puma uma pistola, uma granada de mão e a agenda telefônica de Guilherme Pereira do Rosário.

Cargos

Além de não terem sido punidos, alguns dos envolvidos com o Riocentro foram chamados nos anos seguintes para comandar a área de segurança pública de Estados. Nilton Cerqueira, por exemplo, foi secretário de Segurança Pública do Rio entre 1995 e 1998, no governo de Marcello Alencar (PSDB).

Como secretário, Cerqueira mobilizou dezenas de policiais em 1995 para encontrar uma pistola e uma moto, da marca Honda, roubadas em um assalto que teve como vítima o então deputado Jair Bolsonaro, hoje presidente.

Apontado pelo MP como principal autor do plano para explodir o show de 1º de maio, Edson Sá Rocha chegou ao generalato nas décadas seguintes e foi secretário de segurança dos Estados da Bahia (de 2003 a 2006, no governo de Paulo Souto, do DEM) e de Alagoas (2007 a 2008, no mandato de Teotônio Vilela Filho, do PSDB). Morreu no dia 25 de março do ano passado, em Brasília, no Hospital das Forças Armadas (HFA), vítima de uma pneumonia, aos 78 anos.

Logo após o atentado, o Exército instaurou um inquérito policial militar (IPM) destinado a apurar o fato. A investigação foi conduzida pelo então coronel Job Lorenna de Sant’Anna, que apresentou suas conclusões em 30 de junho de 1981. Com cerca de 700 páginas, o relatório dizia que Wilson Machado e Guilherme Pereira do Rosário foram vítimas de terroristas de esquerda que haviam colocado a bomba no carro, durante um momento de distração da dupla. Anos mais tarde, em 2014, o próprio Sant’Anna foi citado na denúncia do MPF – só não foi denunciado por estar morto.

Meses após o episódio de Jacarepaguá, o presidente João Baptista Figueiredo sofreu um enfarte e viajou para os Estados Unidos, a fim de fazer um tratamento de saúde. O atentado é considerado um divisor de águas no governo e na vida do general Figueiredo, lembra o historiador Bernardo Pasqualette, autor de “Me esqueçam — Figueiredo: a biografia de uma Presidência”.

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“Talvez a declaração do ex-presidente (Ernesto) Geisel defina o sentimento coletivo que restou em relação ao Riocentro: ‘O problema não foi apurado como devia ser. Figueiredo deve ter tido um drama de consciência muito grande. Achou que era mais importante ficar com a classe’ “, destacou o historiador.

Em 1999, o então chefe do Ministério Público Militar, Kleber de Carvalho Coêlho, determinou a abertura de um novo IPM para apurar o caso. Desta vez, as investigações foram conduzidas pelo general Sérgio Conforto, que passou para a reserva em 2010.

O novo IPM resultou no indiciamento de Wilson Machado (por homicídio qualificado) e de Newton Cruz (por falso testemunho). O relatório também acusou o envolvimento de Guilherme Rosário e do coronel Freddie Perdigão Pereira. O coronel Freddie era um agente da repressão que esteve no Riocentro no dia do atentado para coordenar uma das equipes responsáveis pelo ataque, como indicou a investigação. Rosário e Freddie só não foram indiciados porque, à época dessas conclusões, já haviam morrido.

A denúncia resultante do relatório foi aceita pelo Superior Tribunal Militar (STM), meses depois. Na hora de decidir o mérito do caso, em maio de 2000, a corte militar arquivou o feito, livrando Newton Cruz e Wilson Machado. A decisão do STM foi referendada em março de 2001 pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Na ocasião, o colegiado era integrado pelos ministros Marco Aurélio Mello, o relator do caso, Nelson Jobim e Néri da Silveira. “É hora de terminar com esse episódio”, disse Marco Aurélio ao votar.

Nova denúncia

A investigação oficial mais ampla e definitiva começou apenas em 2012 e foi feita pelo Ministério Público Federal do Rio. Dos 15 acusados de envolvimento quando a denúncia foi oferecida, em 2014, só cinco continuam vivos. Apesar de ter sido aceita pela 1ª Instância da Justiça Federal, o MPF acabou derrotado depois, tanto no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) quanto no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo.

Para o procurador da República Antônio do Passo Cabral, principal responsável pela denúncia, a investigação trouxe fatos de grande valor histórico, que não permitem considerar o trabalho em vão.

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“Nosso trabalho fez a reconstrução histórica do evento. Conseguimos descobrir inúmeras provas novas, que jamais haviam sido reveladas. A investigação foi muito bem sucedida e levamos os culpados, dentro da nossa convicção, ao Judiciário”, afirmou Cabral. “O que é dramático é que a demora do Judiciário para resolver faz com que fique cada vez mais difícil a punição aos culpados. Faz com que provas fiquem mais difíceis de serem colhidas, faz com que réus comecem a falecer. E muitos já morreram e não pudemos processar”.

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