''Quem pode mais usa a Justiça melhor''

Entrevista- Carlos Ari Sundfeld: constitucionalista e consultor de direito público; jurista adverte: rico paga melhores advogados e se sai melhor, 'mas isso vale para todas as outras coisas, não só na Justiça'

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Por Gabriel Manzano Filho
Atualização:

Um juiz manda prender, outro manda soltar. A polícia condena, a Justiça absolve. O rico tem bons advogados e se livra da pena, mas com o pobre acontece o oposto. A mídia é um fator de pressão nas decisões jurídicas. Por episódios assim, toda vez que um caso importante vai à Justiça, na vida brasileira, a maioria das pessoas fica com a impressão de que ela vive mergulhada numa grande balbúrdia. "Isso ocorre porque as pessoas têm uma idéia errada do direito e da Justiça", diz o advogado constitucionalista Carlos Ari Sundfeld. "É evidente que muita gente tende a ver alguém preso já como culpado - e justiça não é isso. Também é verdade que quem tem mais dinheiro usa melhor os serviços da Justiça - "mas isso não é um fato do direito, e sim da vida". Conflitos do tipo prende-solta, como o que acaba de ocorrer com o banqueiro Daniel Dantas, diz Sundfeld ao Estado, "resultam do poder que os juízes adquiriram, nos últimos tempos, de tomar decisões provisórias, antes que se julgue o mérito de um processo". A seguir, a entrevista. O vaivém das decisões do Judiciário, nas prisões da Operação Satiagraha, deixa a impressão de que a Justiça é uma grande confusão. Como explicar as divergências? O que gera essa instabilidade é que a legislação criou um poder cautelar que permite ao juiz tomar decisões provisórias. São medidas adotadas sem instrução completa, apenas para proteger o processo contra quem queira obstruí-lo ou para evitar a fuga dos envolvidos. Elas acontecem no meio do caminho, com muita freqüência, e isso cria uma certa precariedade. Não está ainda em jogo, nessas decisões, se alguém é culpado ou inocente. Divergências, então, tornam-se inevitáveis. Julgamentos são subjetivos, um juiz vê diferente do outro. E isso cria problemas para a imagem da Justiça, não? É verdade. E ocorre porque muitas pessoas têm uma idéia errada da Justiça. Tendem, com freqüência, a considerar culpado alguém que foi preso, é um suspeito e está ainda sendo acusado. E tudo o que vai contra essa impressão inicial é visto como negação da justiça. Mas entre profissionais, advogados, promotores, juízes, não seria normal esperar mais coerência? Que decisões de 1.ª Instância e superiores conflitassem menos? Há duas razões para tais divergências. Primeiro, a subjetividade. Pois o direito não é ciência exata, é subjetivo. A imensa maioria das pessoas tem dificuldades de aceitar e entender isso. Imagina tudo na base do certo e errado, bom e mau, e as decisões que fogem dessa linha são vistas como um erro. E não resolve dizer que as diferenças acontecem por causa da formação, ou da idade. É comum vermos juízes experimentados, de mesma idade, discutindo a vida inteira sobre temas jurídicos. E a segunda razão? A segunda razão é que muitas pessoas que decidem na 1.ª Instância fazem um jogo para a opinião pública que a instância superior não pode fazer. A 1ª Instância tende a ser mais impulsiva. Aí, não se trata de divergência na interpretação de normas. O prende-solta resulta mesmo é desses dois fatos - a subjetividade e alguns abusos na 1.ª instância. Essa briga de gato e rato acontece na Justiça de outros países? Também. Isso porque fora do Brasil o poder dos juízes cresceu, da mesma forma, para adotar decisões provisórias. Também colabora para a má imagem da Justiça a evidência de que ela funciona melhor para quem tem mais dinheiro. É verdade, mas isso não é um fato da Justiça, e sim da vida. Um pobre é injustiçado por não ter Justiça e também por não ter muitas outras coisas. A Justiça não tem resposta para isso. Ela é um serviço que se presta à sociedade e depende do trabalho dos advogados. Quem tem mais dinheiro usa melhor esse serviço, contrata mais gente, os mais competentes. O mais pobre usa o advogado mais modesto. É uma grande injustiça, não? A solução que a Justiça pôde dar, em seu âmbito, foi criar a defensoria pública, nos níveis estadual e federal. Ela garante a defesa dos que não têm dinheiro para pagar advogados. Policiais e promotores são acusados de fazer estardalhaço e cometer abusos. A mídia é acusada de invadir privacidade. As garantias estão ameaçadas? Esse não é um tema simples. A aplicação da justiça se faz pelo exemplo. É preciso que se saiba, sim, que o Estado pune quem transgride a lei. É uma forma de ensinar que não vale a pena violá-la. Mas cabe à autoridade não se valer disso para promoção pessoal. Usar o poder do cargo nas aspirações políticas, ou outras, é um claríssimo desvio. Outro limite é o respeito aos direitos básicos das pessoas. Não tem sentido, por exemplo, ultrapassar os limites da intimidade, da vida privada de alguém - ainda mais se a pessoa sequer foi julgada e condenada. E como corrigir esses abusos? Com regras claras de procedimento e punição para os que as ignoraram. Mas ainda não chegamos ao estágio em que a sociedade considere isso uma necessidade urgente. Quem é: Carlos Ari Sundfeld Professor de Direito na Fundação Getúlio Vargas, especialista em direito público e regulação, com doutorado na PUC Ajudou a fazer a Lei Geral de Telecomunicações e a definir forma de ação da Anatel

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