Professora brasileira ganha prêmio internacional por robô 'cão-guia' para cegos

Neide Sellin, de 41 anos, soube transformar a ideia de uma aluna em negócio com potencial de gerar receita e ainda ajudar milhões de pessoas

PUBLICIDADE

Foto do author Adriana Ferraz
Por Adriana Ferraz
Atualização:

Ela não late, não abana o rabo nem pede para brincar, mas identifica e protege o dono de todos os obstáculos pela frente e ainda traça uma rota segura até o destino desejado. Primeiro robô desenvolvido para ser “cão-guia” de pessoas com deficiência visual, Lysa é brasileira e já nasceu com o selo da inclusão. Criada por uma professora pública capixaba, filha de uma dona de casa e de um ajudante de pedreiro, a máquina funciona como uma espécie de carro automático.

As primeiras 20 peças serão entregues no dia 30 e coroam a persistência de uma mulher que virou empreendedora para colocar as ideias de seus estudantes em prática. Deixar a sala de aula não foi um processo fácil para Neide Sellin, de 41 anos, mas era a única maneira de transformar uma sugestão despretensiosa em um projeto capaz de mudar a vida de milhões de pessoas – o País tem cerca de 6 milhões de cegos. 

Neide e o robô-guia Lysa; no início do mês, projeto foi premiado na feira de tecnologia de Cingapura. Foto: Marlon Marques/Estadão

PUBLICIDADE

“Era o ano de 2011. Dava aulas de robótica para classes do ensino médio na Escola Municipal Clóvis Borges Miguel, no centro de Serra, Espírito Santo. O foco eram propostas de cunho social, como lixeiras automáticas para reciclagem”, relatou. “Um dia, uma aluna me perguntou se poderíamos fazer um robô-cachorrinho. Perguntei por quê, e ela logo respondeu: para ajudar as pessoas que não enxergam.”

Na hora, a professora não vislumbrou como levar aquela ideia adiante, mas se lembrou que a escola tinha uma aluna cega e foi atrás dela para saber de suas necessidades no dia a dia. “Foi quando eu soube que desviar de objetos suspensos era o seu maior desafio. E, claro, porque a bengala não consegue alcançá-los.”

Depois de quatro meses de muito estudo, Neide chegou ao primeiro protótipo feito com peças de ferro-velho, que tinha como objetivo inicial identificar obstáculos a tempo de seus condutores não se machucarem. “Levei a peça para a mesma aluna, que experimentou e me disse: ‘Nossa, isso vai mudar a minha vida’. E mudou foi a minha. Dali por diante passei a ter uma causa, um projeto mesmo de vida”, afirmou Neide, sobre os últimos dez anos.

Essa trajetória inclui até mesmo uma participação na versão brasileira do reality show “Shark Tank”, em 2017. E Neide “quebrou a banca”, saindo do programa com R$ 200 mil e quatro sócios. “As coisas começavam a andar, e daí veio a pandemia. Tivemos de paralisar os testes, e a única coisa que pude fazer foi correr atrás de financiamento, caçar editais. Deu certo de novo. Captei R$ 3 milhões e iniciei, enfim, a produção”, disse.

O apoio foi dado por três fundos públicos de amparo à pesquisa de São Paulo, Rio e Espírito Santo. O recurso permitiu melhorias na versão final do robô, que pode ser programado para gerar mapas de ambientes fechados, permitindo uma verdadeira navegação. A Lysa “fala” e direciona seus condutores por meio de rodas que os puxam para frente ou para os lados e ainda os fazem parar diante de obstáculos. O Shopping Morumbi, por exemplo, terá o seu exemplar na terça.

Publicidade

As vantagens da Lysa em relação aos cães de carne e osso não param por aí. Ela tem custo estimado de R$ 15 mil. O valor é três vezes menor que os R$ 60 mil necessários para que um animal vire guia. Hoje, por causa do custo, do tempo de treinamento (dois anos) e do baixo número de instrutores capacitados, a fila de espera soma mais de 500 nomes.

“Ficar cego é uma coisa que pode acontecer com qualquer pessoa. E, para quem não enxerga, ter um equipamento como esse representa empoderamento e liberdade. São essas as palavras que eu escuto de quem a testa.” O nome feminino é uma homenagem a Steve Jobs, fundador da Apple, por meio de sua filha, que se chama Lisa (com “i”). 

A escolha deu sorte. A invenção da professora que trabalhou e estudou em escolas públicas – e só se formou em ciências da computação depois de conseguir uma bolsa – foi premiada internacionalmente no início do mês. Ficou em terceiro lugar na categoria Cidades Inteligentes na Semana de Inovação e Tecnologia de Cingapura.

“É um prêmio simbólico pra mim. Essa área de tecnologia é muito discriminatória. Tenho certeza de que muitos dos ‘nãos’ que recebi nesse caminho me foram dados porque sou mulher”, afirmou. “Chegaram a me perguntar se meu marido era o engenheiro responsável pelo projeto. É incrível como para nós, mulheres, as portas e janelas se fecham o tempo todo. Não podemos errar nada, um gesto, uma fala. Mas sabemos construir outras portas e outras janelas.” No caso de Neide, até robôs.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.