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Preso político foi torturado em hospital do Exército na ditadura, diz relatório

Texto produzido pelos sobrinhos do engenheiro Raul Amaro foi entregue à Comissão da Verdade do Rio

Por Felipe Werneck
Atualização:

Relatório entregue nessa quinta-feira, 5, à Comissão da Verdade do Rio, produzido pelos sobrinhos do engenheiro Raul Amaro Nin Ferreira, torturado e morto durante a ditadura militar, revela documentos inéditos como um ofício encaminhado ao diretor do Hospital Central do Exército (HCE) em 11 de agosto de 1971 pelo então comandante do I Exército, general Sylvio Frota, que ordena a entrada de dois agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) "a fim de interrogarem o preso".Raul Amaro tinha 27 anos. Ele morreu às 15h50 do dia seguinte, de acordo com o atestado de óbito apresentado à época, no qual constava que a causa da morte "depende de resultado de exame laboratorial". No entanto, relatório do DOI produzido na véspera apontava que "não houve tempo para inquiri-lo sobre todo o material encontrado em seu poder", o que indica que ele pode ter morrido um dia antes, durante o interrogatório no HCE.Raul Amaro havia sido preso no dia 1.º de agosto de 1971 em uma blitz da Polícia do Exército em Laranjeiras, na zona sul do Rio. Levado para o Dops, ele foi transferido no dia seguinte para o DOI-Codi. De acordo com o depoimento do ex-soldado Marco Aurélio Magalhães, a tortura se estendeu até a madrugada do dia 4, quando ele foi encaminhado ao HCE, desfalecido.Os autores do relatório chamam a atenção para o fato de que não há qualquer registro de transferência de Raul Amaro do HCE para outro local, mas existe um documento com informações dadas por ele em interrogatório nesse período, o que "levanta indícios fortes de que ele foi interrogado sob tortura, até a morte, dentro do próprio hospital". Produzida pelo DOI, a "Declaração do Interrogado" foi obtida no acervo do Serviço Nacional de Informações (SNI), no Arquivo Nacional. Além disso, a autópsia de Raul indica que ele sofreu muito mais ferimentos do que o que há registrado na caderneta de entrada no HCE.Os agentes do DOPS citados no ofício encaminhado por Sylvio Frota ao diretor do HCE são o comissário Eduardo Rodrigues e o escrivão Jeovah Silva. Depois, Eduardo Rodrigues foi apontado como torturador no relatório Brasil Nunca Mais. Já o ofício do DOI com "todo o material apreendido em poder de Raul Amaro, bem como cópia das declarações prestadas pelo referido preso neste destacamento" é assinado pelo major José Antonio Nogueira Belham, implicado no desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva.Depois da blitz em Laranjeiras, Raul Amaro foi levado por militares até o seu apartamento. A versão oficial sobre a prisão e a morte do engenheiro, divulgada em 29 de setembro de 1971 pelo Centro de Informações do Exército, afirmava que ele tentou escapar enquanto policiais recolhiam e examinavam o material encontrado no apartamento e que ele "reagiu com agressividade violenta" quando um guarda tentou impedir a fuga. Ainda de acordo com a versão, "os demais policiais acorreram ao local, só conseguindo conter o subversivo após cerrada luta corporal, levando-se em conta que o preso era muito corpulento (1.95m e pesava mais de 100kg)". De acordo com a versão divulgada pelo CEI, Raul Amaro foi "vítima de edema pulmonar" no HCE.Ex-aluno do colégio São Bento e da PUC, de família rica e conservadora, Raul trabalhava no Ministério da Indústria e Comércio e ao mesmo tempo ajudava amigos que participavam do movimento guerrilheiro contra o regime. Para o ex-preso político e integrante da Comissão da Verdade do Rio, o jornalista Álvaro Caldas, o caso de tortura seguida de morte dentro do HCE indicado pelos documentos é inédito. A família de Raul pediu à comissão que o laudo médico de entrada no HCE e o do legista que examinou o cadáver sejam confrontados. "O relatório traz muita coisa à tona, reconstitui o calvário de 12 dias desde a prisão, é detalhado e comprovado com documentos", disse Caldas.Autor da ordem para o interrogatório no HCE, o general Sylvio Frota depois foi ministro do Exército durante o governo Ernesto Geisel, até 1977. Somente em 1994 a União foi responsabilizada pela prisão, tortura e morte do engenheiro, após longa batalha judicial da família contra o Estado.

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O relatório, que aponta 17 pessoas envolvidas na prisão, interrogatório, tortura e assassinato de Raul Amaro, foi produzido pelos sobrinhos Felipe e Raul Nin, junto com o coordenador do Armazém Memória e vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, Marcelo Zelic. "Espero que esse trabalho ajude os movimentos sociais a refletir sobre a questão da violência do Estado contra a população", disse o advogado Raul, sobrinho do engenheiro. "O caso Raul Amaro traz em si um dos pontos fundamentais que é derrubar de vez essa discussão de que o porão era um bando de maluco que atuava por conta, de que o dito porão não fazia parte das estruturas das forças de segurança do País naquela época", disse Zelic. "Vivemos em um País em que as pessoas ficam pregando que existe um 'nunca mais', mas o Brasil é o terceiro país que mais tem pessoas encarceradas no mundo e o número de pessoas mortas e desaparecidas durante a democracia é inúmeras vezes maior que o produzido durante a ditadura, o que não torna a ditadura algo mais brando, muito pelo contrário. Mostra como veio se radicalizando na sociedade uma situação de descalabro, descontrole, violência, e o caso Raul Amaro pode contribuir para uma reflexão. O que mudou no nosso presente?", acrescentou o representante do Tortura Nunca Mais.

Resultado de pesquisas no Arquivo Nacional e nos arquivos públicos de São Paulo e do Rio, além de entrevistas com amigos e parentes de Raul Amaro, o relatório de 226 páginas será disponibilizado no site do Armazém Memória: http://www.armazemmemoria.com.br/

 

 

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