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'Pobreza não se define por dinheiro no bolso', diz pesquisador

Por Isadora Peron
Atualização:

SÃO PAULO - Em entrevista ao Estado, o pesquisador Arilson Favareto, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), faz um alerta sobre os últimos dados do Censo: o número de miseráveis no Brasil pode ser muito maior do que os 16,2 milhões que vão ser contemplados pelo programa Brasil Sem Miséria, recém-lançado pelo governo federal.

 

Abaixo, leia a íntegra da entrevista.

 

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O público alvo do programa Brasil Sem Miséria é formado por famílias com renda mensal de até R$ 70 por pessoa. A partir desse critério, delimitou-se que 16,2 milhões de pessoas vivem na miséria no Brasil. Esse número pode ser maior?

 

No mundo inteiro hoje existe uma tendência, tanto entre pesquisadores como entre os planejadores de políticas públicas, que usar exclusivamente a renda como critério para definir a pobreza pode levar a enormes distorções. Cada vez mais as pessoas têm considerado que pobreza não é algo que se define pela quantidade de dinheiro que uma pessoa ou uma família tem no bolso, mas, sobretudo, pobreza é algo que se define como privação de capacidades. E no mundo moderno ter dinheiro é só uma das capacidades necessárias para poder participar da vida social e econômica de uma comunidade. Além de ter um mínimo de renda, é necessário, pelo menos, ter algum nível de instrução, saber ler, saber escrever, além de ter condições para viver uma vida minimamente longa e saudável. Pelo menos esses outros dois critérios precisariam ser agregados ao da renda, não adianta nada a pessoa ter R$ 70 no bolso, mas ser analfabeta, morar na rua, isso também é uma situação de pobreza extrema. Se o Brasil adotasse critérios multidimensionais para a definição da pobreza, certamente o número não seria 16 milhões, seria significativamente maior. Além disso, o critério é único para o Brasil inteiro, e você ter R$ 70 na região metropolitana de São Paulo é uma coisa, você ter R$ 70 num povoado pequeno da Amazônia é outra bem diferente.

 

Os dados do Censo de 2010 mostraram que hoje a pobreza é cada vez menos rural e mais urbana. Por que isso acontece?

 

Até os anos 1990 no Brasil, você teve as cidades como principal polo de geração de empregos, a partir de então, por conta da modernização tecnológica, começa a haver um desemprego muito forte na cidade. De outro lado, existe uma série de programas governamentais, como o Bolsa Família, o Pronaf, que foram massificados nas regiões rurais. O que aconteceu foi o seguinte: de um lado, as condições de vida nas regiões interioranas melhoraram e, de outro lado, as condições de vida nos grandes centros urbanos pioraram. Mas a renda per capta das pessoas que vivem na zona urbana ainda é maior, porque são nas cidades que se concentram as oportunidades de trabalho e de emprego e também as atividades econômicas de maior valor agregado, que exigem mais escolaridade. E isso faz com que a massa de riqueza seja maior na cidade do que no campo.

 

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Apesar de haver mais miseráveis nas cidades, as políticas do Brasil Sem Miséria parecem mais voltadas para o campo. Isso é um problema?

 

É, com certeza. Mas não é o único. A maneira como o programa define regiões rurais e urbanas é um outro problema grave. Isso cria uma separação artificial do público alvo do programa que não corresponde à realidade. Porque ele define como rural famílias que têm toda a vida ligada às pequenas cidades, mas porque moram num sítio, são consideradas da zona rural, ou, na situação inversa, define como urbana famílias que têm toda a sua vida ligada à atividade agrícola, mas moram na cidade. Então esse é um problema sério do ponto de vista do planejamento. Na vida das pessoas, essa dicotomia está superada. Há pessoas que moram no rural e trabalham no urbana e vice-versa, então não faz sentido você separar essas duas coisas como se as atividades tida como urbanas - comércio, serviço, indústria, tudo aquilo que não é agricultura - fosse uma coisa que só acontece em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte. Não, nós estamos no século 21, isso mudou. Então quando você diz: aqui para vocês da zona rural, eu vou dar sementes, você simplesmente está ignorando aquilo que é o movimento mais pujante dessas regiões interioranas. O problema hoje é esse: que se associa as regiões interioranas do Brasil à agricultura, e elas deixaram de ser isso há muito tempo. E pior: a agricultura não tem a capacidade de dinamizar a vida dessas regiões interioranas, então desse ponto de vista, o erro é muito grande.

 

Existem outros obstáculos dessa ordem?

 

Sim. O projeto é apresentado sem uma boa avaliação das iniciativas anteriores. No primeiro mandato do governo Lula foi lançado o programa Fome Zero, qual a avaliação do Fome Zero? Ninguém sabe. No começo do segundo mandato do governo, foi lançado o Territórios da Cidadania. Qual a avaliação desse programa? Ninguém sabe. Então, o que se esperaria, é que um terceiro programa que vai mais ou menos na mesma linha, ou seja, tenta enfrentar problemas senão iguais, similares, que ele se baseasse nos erros e acertos dos programas anteriores e isso não acontece. Portanto a gente fica um pouco sem referência para saber se as medidas estão corretas ou não. Outro problema é a maneira como se pensa a famosa porta de saída, isto é, os caminhos para as pessoas saírem da miséria. À medida que o programa tem determinadas ações voltadas para a pobreza rural e outras voltadas para a pobreza urbana, ele deixa de dialogar com uma das principais mudanças demográficas contemporânea, que é essa maior interpenetração entre as áreas rurais e as pequenas cidades no interior. Para traduzir um pouco isso: a participação das atividades agrícolas é cada vez menor tanto na ocupação do trabalho das famílias como na renda, essa é uma tendência clara, tanto internacional quanto para o Brasil. E o que o programa faz? O programa diz: para quem está na pobreza rural, atividades agrícolas. E isso é um erro, porque são exatamente as atividades que estão perdendo participação na formação da renda e na ocupação do trabalho. Isso significa que essas não são atividades atrativas, elas estão perdendo a atratividade se comparadas com atividades do setor secundário e terciário, das pequenas indústrias, do comércio e serviços. A posição que seria mais eficiente, e que o programa deveria fazer, é ter uma estratégia para as áreas metropolitanas, que é onde gradativamente vai se concentrando, agora, a pobreza, e ter um outro tipo de política, não para aquilo que eles estão chamando de pobreza rural, mas para pobreza naquilo que eu chamaria de regiões interioranas, e aí o principal foco, talvez não fosse nem a agricultura, mas, sim, justamente, a criação de um conjunto de oportunidades não agrícolas nessas regiões interioranas, justamente para poder diversificar a fonte de renda das famílias. Por exemplo: é difícil imaginar que numa região muito pobre, você distribuindo sementes, isso vai tirar essas famílias da pobreza. A maneira como está desenhada a chamada porta de saída simplesmente ignora as principais tendências socioeconômicas que marcam o Brasil do século 21. É como se estivessem pensando a porta de saída para o último quarto do século 20, mas não para o começo do século 21.

 

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O agronegócio, então, não seria o caminho para acabar com a pobreza rural.

 

Certamente não, porque a agricultura é cada vez mais poupadora de trabalho, isto é, você produz cada vez mais empregando menos gente. Na cultura da cana, que é muito forte aqui em São Paulo, você precisa de pelo menos 100 hectares para empregar 1 pessoa. Na soja, que é um dos principais produtos da nossa pauta de exportação, esse número vai, mais ou menos, para 200 hectares para empregar 1 pessoa. Então a agricultura certamente é importante para o Brasil e para o mundo porque a gente precisa da produção de grãos e alimentos, mas do ponto de vista do desenvolvimento, a agricultura gera riquezas, mas ela não contribui para o combate a pobreza e não contribui para a diminuição da desigualdade.

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Que outras conclusões podem ser tiradas analisando os dados do Censo que já foram disponibilizados?

 

A gente ainda tem um número de pessoas adultas analfabetas relativamente grande. E esse é um número que deve ser levado em conta quando se está pensando em situação de pobreza extrema. Além disso, podemos notar o estancamento do crescimento das metrópoles e o maior dinamismo das chamadas cidades médias, que podem ser de dois tipos: algumas na periferias das metrópoles, portanto é quase um transbordamento da metropolização e outras, e aí está a novidade, em regiões interioranas do Brasil. Isso representa uma oportunidade para a dinamização econômica dessas regiões, que precisa ser melhor reconhecida e mais bem aproveitada pelos planejadores de políticas públicas. Essa é uma novidade na história demográfica do Brasil e abre enormes possibilidades.

 

 

Há uma tendência de que essas cidades possam funcionar como polos ou enclaves. Os polos irradiam benefícios para o seu entorno. Com o enclave, acontece o contrário, é uma espécie de ilha de prosperidade, num mar de precariedade. Qual o papel essas cidades médias vão adquirir depende das políticas públicas, das políticas de desenvolvimento regional, do tipo de atividade econômica que pode favorecer essas regiões, da maneira como o poder público pode favorecer a conectividade das pequenas cidades do entorno a esses grandes centros. Se houver um conjunto de ações complementares, essas cidades podem de fato representar polos, como se elas fossem nós numa teia densa de municípios. Se essas ações não ocorrerem, e hoje elas não estão ocorrendo, essas cidades não vão cumprir esse papel de polos, elas vão ser enclaves. Para que isso não aconteça, deveria haver um planejamento visando aumentar a conectividade dos pequenos municípios das regiões interioranas com esses polos, de maneira a romper esse isolamento e também uma política agressiva para diversificar as atividades econômicas e favorecer a complementaridade entre essas pequenas cidades e os núcleos urbanos de maior porte.

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