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Permanência em favelas põe em risco integridade das Forças Armadas

Soldados não estão preparados para tarefa requerida e há risco de corrupção, dizem especialistas; em 2008, militares foram acusados de entregar jovens a facção rival

Por João Fellet
Atualização:

SÃO PAULO - A permanência de militares em favelas recém-ocupadas por policiais no Rio de Janeiro pode por em risco a integridade das Forças Armadas e a população dessas áreas, segundo especialistas ouvidos pela BBC Brasil. Na última terça-feira, o governador do Rio, Sérgio Cabral, pediu ao Ministério da Defesa que os militares atuem na segurança do Estado até outubro de 2011. O presidente Lula aceitou o pedido. Segundo Cabral, a presença das tropas do Exército permitirá que a polícia se concentre no "trabalho de inteligência", até que sejam formados policiais para atuar em Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) a serem instaladas no Complexo do Alemão e na favela de Vila Cruzeiro. Os analistas, no entanto, avaliam que os militares não estão preparados para realizar as atividades de policiamento requeridas pela missão. "Essas ações têm que ser planejadas. O soldado é treinado para matar, e não para o policiamento", diz Michel Misse, sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo Misse, tampouco havia justificativas para o emprego de militares nas operações policiais nos morros. "Esse é um caso de criminalidade, não de guerra nem de terrorismo. Houve confronto (nas incursões policiais)? Não, o que se viu foram fugas em massa."

 

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Risco de contaminação. Para Jorge Zaverucha, coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas da Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), há chances de que as tropas sejam corrompidas pelo tráfico, como ocorreu no morro da Providência, em 2008. Na ocasião, 11 militares que cuidavam da segurança de uma obra do governo federal detiveram e entregaram três jovens pertencentes a uma facção criminosa a um grupo rival - os jovens foram mortos, e os soldados acabaram presos. Não foi a primeira vez que as Forças Armadas atuaram na cidade: na Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente, em 1992, e numa megaoperação contra traficantes de drogas, em 1994, elas já haviam auxiliado forças policiais. Zaverucha diz que, desta vez, os riscos podem ser ainda maiores, já que nunca o Exército brasileiro permaneceu tanto tempo desempenhando atividades de policiamento em favelas. "Quando a polícia é corrompida, ela pode ser substituída pelo Exército. Mas se o Exército se corromper, quem vai substituí-lo?"

O professor afirma, no entanto, que muitos soldados brasileiros hoje estão "mais adestrados" por terem atuado no Haiti, onde o Brasil chefia uma missão da ONU para a estabilização país - a maioria dos soldados que têm participado das operações no Rio já passou pelo país caribenho. Ainda assim, alerta que "uma coisa é estar numa missão com regras de engajamento da ONU, outra uma missão no Rio, com regras de engajamento diferentes". Ele acredita que também há chances de que os militares se desentendam com os policiais quanto às operações, já que os grupos respondem a instituições distintas. "Estamos brincando com fogo." Recurso legal. Já o pesquisador Thomas Costa, da National Defense University, em Washington, considera que o emprego das Forças Armadas em situações emergenciais não é ilegal e pode ser útil. Ele diz que a prática ocorre no mundo todo e lembra quando os Estados Unidos enviaram militares para apoiar autoridades civis após o furacão Katrina assolar Nova Orleans, em 2005. No Brasil, a lei 117/ 2004 possibilita o uso de militares quando o governo federal ou estadual reconhecer que as forças policiais são "indisponíveis, inexistentes ou insuficientes". A legislação determina que a intervenção ocorra por tempo limitado e em área previamente estabelecida. Costa alerta, porém, quanto à necessidade de que as tropas sejam trocadas de tempos em tempos, para evitar a contaminação pelo tráfico, e quanto ao custo da manutenção dos soldados, provavelmente não previsto. "Não será surpresa se, num determinado momento, o Exército apresentar a conta ao governo, e este tenha de ir ao Congresso pedir verbas." Problema mundial. O pesquisador diz, contudo, que os conflitos no Rio não serão resolvidos pelos militares e compara a situação na cidade à de outras metrópoles do mundo subdesenvolvido, como Karachi (Paquistão), Johanesburgo (África do Sul), Kandahar (Afeganistão) e Lagos (Nigéria). Segundo ele, nas últimas décadas, todas essas cidades tiveram grande crescimento populacional e sofreram um processo de fragmentação, abastecido por desigualdades sociais, disputas entre criminosos ou rixas étnicas e religiosas. Embora o Rio não sofra com os dois últimos componentes, diz Costa, a cidade está longe de pôr fim aos outros fatores de divisões e deve continuar a vivenciar episódios de intensa violência. "A tomada do Complexo do Alemão não muda o problema, mas sim o transforma. Outros espaços serão preenchidos pelos traficantes", diz. "Ainda não se sabe como as autoridades locais conseguirão controlar politicamente essas divisões dentro da área urbana. É um problema global, de um mundo novo."

 

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