Em sua primeira visita ao Brasil desde que foi agraciado com o prêmio Nobel de Literatura na semana passada, o escritor peruano Mario Vargas Llosa, 74, chamou de "esquizofrênica" a conduta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no governo brasileiro.
"Lula fez evolução notável na política interna. Há no Brasil um desenvolvimento que impressiona o mundo inteiro, conduzido por posições democráticas admiráveis. O que lamento é que (ele) não tenha uma política internacional equivalente", disse Vargas Llosa, que criticou a relação que Lula mantém com o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad.
Ele ainda se disse "desconcertado, entristecido e indignado" com o encontro entre Lula e o líder cubano Raúl Castro em janeiro, quando o dissidente político cubano Orlando Zapata morreu em razão de uma greve de fome. "Por que um democrata no Brasil vai se abraçar com um ditador repelente como o sr. Castro no mesmo momento em que está morrendo um dissidente?"
Vargas Llosa falou nesta quarta-feira a funcionários do Grupo Abril, em São Paulo, em entrevista conduzida pelo jornalista Ricardo Setti. Ao longo de uma hora, ele tratou da sua reação ao Nobel, da relação entre política e literatura e dos motivos que o fazem estar "mais otimista" quanto aos destinos do mundo e da América Latina.
Correção política
Defensor do liberalismo na economia e na política, Vargas Llosa disse ter ficado "surpreso" com a notícia de que recebera o maior prêmio da literatura mundial, principalmente ao levar em conta os últimos ganhadores.
"A impressão é que eles não queriam dar o prêmio a pessoas controvertidas, principalmente do Terceiro Mundo. Preferiam os que seguiam uma certa correção política. Mas, posto que me deram o prêmio, parece que estavam errados", disse o peruano, provocando risos na plateia.
Vargas Llosa rejeitou a ideia de que a sua atuação política (ele escreve com frequência artigos e ensaios sobre o tema) afete negativamente a sua produção literária.
"A literatura não deve se afastar da vida. (...) Gostaria que a minha obra fosse como uma esponja que absorvesse tudo o que acontece no seu tempo. Não conheço grande literatura que tenha sido indiferente à política."
Desmonte do comunismo
Sobre os rumos da política mundial, o escritor disse estar hoje mais otimista do que há alguns anos, citando o "desmonte" do comunismo.
"Lembro-me de um discurso do Henry Kissinger (secretário de Estado americano entre 1973 e 1977), que não é um tonto, pouco antes da queda do Muro de Berlim (1989). Ele disse: 'Senhoras e senhores, tenhamos claro que o comunismo está aqui para ficar'. Mas ele desapareceu, e não porque foi derrotado pelo Ocidente, mas por uma putrefação interna, por uma incapacidade de organizar uma economia produtiva, porque o sistema de controle do pensamento e da vida o foi asfixiando."
Vargas Llosa também considera que a América Latina evoluiu substancialmente nos últimos anos, com a expansão e a consolidação da democracia.
"(Na América do Sul) hoje só temos uma semiditadura, a de Hugo Chávez, que foi derrotada nas últimas eleições e tem um fracasso econômico enorme. Dificilmente o regime vai sobreviver muito tempo."
Segundo o escritor, os avanços recentes fazem com que o continente "comece a recuperar o tempo perdido". Mas ele alerta que, apesar do progresso, "não se pode cair na ingenuidade, porque pode haver volta".
Experiência desoladora
Para o peruano, situação muito menos promissora que a América Latina tem a República Democrática do Congo, país que ele visitou durante a produção do seu último livro, O sonho do celta, ainda não publicado no Brasil.
A obra trata da vida do diplomata irlandês Roger Casement (1864-1916), que denunciou os abusos cometidos na colonização do então Congo belga pelo rei Leopoldo 2º, entre os séculos 19 e 20.
Vargas Llosa conta que a viagem ao país africano, que durou 15 dias, foi a experiência "mais desoladora, triste e deprimente" de sua vida.
"Vi um médico congolês que me disse: 'o problema número um deste país são os estupros. Aqui, há muitos anos que não se estupra por prazer sexual, o estupro é uma arma para humilhar o adversário. Te digo que num povoado não há uma só mulher que nunca tenha sido estuprada'. Ele me disse isso e começou a chorar de modo atroz."
Para Vargas Llosa, o cenário é tão grave que os prognósticos de que o país não tem solução "pode ser verdadeiro". "Mas, se é certo, a culpa maior, a responsabilidade principal de que o país tenha chegado a essa situação de espanto é a colonização belga, é o que os belgas fizeram ali", diz o escritor.
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