Para ministro, morte de agentes do regime militar não é ''crime''

Em entrevista à BBC Brasil, Paulo Vannuchi defende teto para indenização a vítimas.

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Por Denize Bacoccina
Atualização:

O ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, disse que não usa a "formulação crimes" para classificar a morte de agentes de órgãos de segurança e do Estado por militantes de esquerda durante o regime militar. "Não, eu pessoalmente não uso a formulação crimes", respondeu Vannuchi ao ser questionado se a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que lança nesta quarta-feira um livro relatando as mortes de opositores por parte da repressão no governo militar, pretendia investigar também os crimes cometidos pela resistência aos militares. "Todos fomos presos na armadilha da guerra fria e o relatório registra que aquelas pessoas que estavam lutando também mataram, evitando esta conotação de crime", acrescentou. Vannuchi também defendeu um teto para as indenizações às vítimas do regime militar. Abaixo, a entrevista exclusiva concedida por Vannuchi à BBC Brasil. A idéia de que o governo não abre arquivos precisa ser melhor trabalhada pela imprensa. Eu fui visitar Argentina, Uruguai, Paraguai e o Chile pra conhecer só isso. Não tem dúvida de que o Brasil é o país que tem mais arquivos abertos. Não é mérito deste governo ou do anterior. Começa com os governos estaduais, quando o MDB começa a ganhar as primeiras eleições, anos 90, começa a abrir os arquivos dos Dops estaduais. Em 85, terminou o projeto Brasil Nunca Mais, feito pela Arquidiocese de São Paulo, com documentos do Superior Tribunal Militar, com mais de 1 milhão de páginas, e está na Unicamp e tem muitas informações sobre mortes, torturas, inclusive nome de torturadores. Depois, no governo Lula, em dezembro de 2005, os arquivos da Abin estão no Arquivo Nacional à disposição de consulta. Ali, tem muita informação sobre crimes violentos e nomes. Por último, a Polícia Federal passou seu arquivo da inteligência com muita informação e também existem as DSI (Divisão de Segurança Interna) dos ministérios. O argumento de que não abriu é porque, em alguns procedimentos judiciais, existe uma resposta oficial de que os arquivos existentes foram eliminados com base na legislação vigente na época. A Comissão Interministerial sobre o Araguaia apresentou, em março deste ano, o relatório final recomendando ao presidente Lula a abertura desses arquivos, que tecnicamente já estão desclassificados, porque todos já têm mais de 25 anos. Todos os arquivos da repressão política estão desclassificados. Ou eles desapareceram ou eles estão em mãos privadas. O relatório da Comissão do Araguaia recomenda ao presidente que determine o recolhimento desses documentos. Então, o que nós propomos é que cada arma chame seus militares, da ativa e da reserva, que continuam subordinados ao regulamento, e peça a devolução dos documentos. Não, e eu pessoalmente não uso a formulação crimes. A lei 9.140 é muito clara neste sentido. Nesses anos todos, já houve mais de uma iniciativa nesta linha. E aqueles que foram mortos no cumprimento do seu dever de policial militar por que não são indenizados? O entendimento do legislador ao fazer a lei 9.140 é que houve uma legalidade constitucional quebrada. Este é o fato primeiro. Eles não podem botar os seus tanques para depor o presidente da República. A legislação entendeu que o processo começou em setembro de 1961, porque o presidente constitucional renunciou e tinha que assumir o vice. A lei 9.140 entende que quem lutou contra o governo já em 1963, antes do golpe militar, pode ser indenizado, porque aquele governo já era inconstitucional, e quando cidadãos lutam contra um governo ditatorial eles estão protegidos pela lei. Mas o relatório não quis criar uma coisa maniqueísta de que o bem está de um lado e o mal do outro. Todos fomos presos na armadilha da guerra fria e o relatório registra que aquelas pessoas que estavam lutando também mataram, evitando esta conotação de crime. Eu fui preso durante cinco anos. Você quer que eu seja investigado e vá para a cadeia? Eu fui condenado. Tem gente que ficou dez anos. Isso já aconteceu. As pessoas já foram investigadas e foram mortas, na tortura, por terem matado esses militares. O livro fala de uma sentença de morte extra-judicial. Num certo momento, quem participou de morte, morria. A idéia de que tem que fazer uma investigação dos dois lados, ela peca por ignorar que durante o regime militar essas pessoas foram expulsas do país, demitidas, perseguidas, espionadas, foram presas e algumas foram mortas. Não é o foco do livro, e não é o foco da investigação da Comissão. Isso está sendo criticado por familiares que acham que um livro do governo tinha que ser um livro pedindo a abertura de processo. Esta comissão existe há 11 anos e o foco dela é o reconhecimento da responsabilidade do Estado, a indenização reparatória, a narrativa, a publicização da versão de que morreram sob tortura, não foi suicídio. Centrar-se no objetivo da localização dos corpos de 140 brasileiros e brasileiras, mais ou menos, cujas famílias têm este direito. O meu objetivo com o livro é que desperte um debate e um convencimento sereno, e o mais consensual possível, de todos olharmos pra trás e falarmos: isso que aconteceu no Brasil ninguém quer de volta e para virar esta página não pode ficar como está. Porque tem um conjunto expressivo de famílias, e os corpos do seu pai, da sua mãe, de seus filhos, eles existem e podem ser enterrados no cemitério da família. Em direitos humanos, é impensável a idéia de que um assunto como esse devesse ser mantido escondido. É uma falsa noção de achar que apresentar isso reaviva feridas. Não, expõe um conhecimento grave sobre a história recente do Brasil que nós temos que ter. Se suscitar um debate sobre a anistia, o Brasil terá a oportunidade de definir ou reafirmar posições. Não vou tomar a iniciativa de dizer: a lei de anistia é uma lei injusta. Por quê? Porque ela é uma lei contraditória, como todos os fenômenos políticos, e ela permitiu um impulso muito importante à democracia brasileira. Com a lei de anistia, os exilados voltaram, as prisões começaram a se esvaziar, avançou a recuperação da liberdade de imprensa, preparou-se o terreno para o quadro partidário atual. A lei de anistia tem muitos benefícios. A indenização em direitos humanos é uma imposição dos tratados internacionais. Quando chega na Comissão dos Mortos e Desaparecidos, a indenização é quase simbólica. Ela tem um piso de R$ 100 mil, e a mais alta é de R$ 152 mil. Vamos convir que é pouco para uma vida humana. A outra discussão do Ministério da Justiça você pode fazer até por uma comparação. Ora, se um cara que foi morto na tortura, trucidado, foi indenizado em R$ 150 mil, um sujeito que foi demitido do emprego, ficou desempregado seis meses, como é que ele pode ter uma indenização maior do que essa. Pois é, porque as leis foram feitas separadamente. Ninguém cuidou de vincular as duas. Eu, se pudesse trabalhar nisso na época, teria criado o piso dos mortos e desaparecidos, de R$ 100 mil, e esse teria que ser o teto. Por uma lógica assim elementar: se para quem morreu, o piso é R$ 100 mil, quem ficou vivo o máximo é R$ 100 mil. Agora, o que aconteceu é que a lei começou assim, e de fato ela tinha um teto de R$ 100 mil, e aí entrou o negócio do retroativo de dez anos e 20 anos e virou milhões. E virou aí um problema gravíssimo que, em algum momento, nós vamos ter que tomar alguma iniciativa para equalizar isso. Existe, existe vivamente esta disposição. Mas eu não quero dizer isso, porque é do Ministério da Justiça. Eu preciso falar com o ministro Tarso Genro, ver a opinião dele. Mas qualquer novidade que busque criar este critério de equalização entre uma coisa e outra, correspondente a sensatez, ao bom senso, à idéia mais profunda do espírito do direito. E, se um ou outro interessado reclamar, eu sinto muito. Mas aqui várias vezes no governo já houve muitas reflexoes sobre isso. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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