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Para Lagos, só justiça social consolidará progresso na AL

Por Agencia Estado
Atualização:

O presidente do Chile, Ricardo Lagos, um dos 21 governantes que participam hoje da 12ª Cúpula Ibero-americana, na República Dominicana, afirma em seu discurso que os países da América Latina precisam ter uma posição ativa diante da nova ordem mundial. "Não queremos uma globalização sem regras, porque neste caso as regras serão determinadas pelos mais fortes", diz. Veja a íntegra do discurso de Lagos: "Os países da América Latina enfrentam hoje um dos desafios mais difíceis de sua história. Trata-se, nem mais nem menos, de encontrar os espaços de nossa ação e presença em um mundo de globalização crescente, ao mesmo tempo em que renovamos o sentido e o compromisso da política e a democracia. Por isso, talvez seja necessário pensar em uma nova proclamação aos povos deste continente, a qual, enraizada nos valores de independência e construção nacional de 200 anos atrás nos convoque para uma nova façanha de inserção no mundo moderno a partir de um projeto compartilhado capaz de gerar sociedades mais justas, socialmente coesas e com democracias sólidas. Ao falar no Parlamento do Equador há algumas semanas, disse que referir-se a esses temas em sua capital, localizada no equinócio, no centro do planeta, era provavelmente o melhor lugar para pensar nos desafios do mundo globalizado e sua relação com as tarefas cotidianas e concretas presentes em cada um dos países latino-americanos. Desde os anos 80, todos os nossos países, em maior ou menor medida, fizeram seu o chamado "Consenso de Washington". Reformamos nossas economias para equilibrá-las, abrimos os mercados para aumentar a competitividade, reconhecemos um setor privado eficaz e em expansão como o principal motor do progresso econômico. A América Latina realizou notáveis esforços para se incorporar às tendências principais do sistema internacional e se aproximar da modernidade difundida pelo processo globalizador. No entanto, embora nossa região tenha conseguido avanços importantes, o balanço de hoje está longe de ser positivo e, uma vez mais, a frustração mostra seu rosto entre os povos do continente. Isto se deve ao fato de que as mudanças das políticas econômicas não se traduziram em bem-estar para grande parte dos cidadãos e a desigualdade continuou se reproduzindo. Este mal-estar econômico e social se estendeu em muitos de nossos países ao campo político e ameaça a legitimidade das democracias no continente. Observamos o crescimento do desapego às instituições, às organizações e às lideranças. Aqui temos um objetivo maior. Como resultado de dificuldades no caminho, os sistemas democráticos são percebidos por muitos de nossos cidadãos como insuficientes para dar respostas às demandas da maioria. Creio que o problema pode ser resumido no fato de que as políticas econômicas baseadas no Consenso de Washington não conseguem sozinhas resolver os desafios de eqüidade e igualdade de oportunidades, sem as quais não é possível a coesão social. Esta coesão social requer políticas públicas orientadas à sua realização. É exigida para elas a mesma força com a qual impulsionamos reformas econômicas indispensáveis e que levemos adiante as reformas sociais que brindem segurança à cidadania. As pessoas querem viver com mais certeza em setores como o trabalho, a saúde, a educação e o acesso à habitação, garantindo proteção social mediante sistemas universais, solidários, eficientes e integrais. Como todos sabemos, essas reformas não são fáceis de implementar. Elas provocam a resistência de distintos interesses corporativos e, em muitos casos, instigam o rechaço dos fundamentalistas do mercado. Diante deles é necessário falar com clareza: o mercado atribui recursos e atribui bem os recursos, mas atua como consumidor. Esta é sua dimensão, não outra. Cidadãos e consumidores somos todos, mas os consumidores apenas participam com seu bolso. Como cidadãos temos todos direito ao voto e nele se fundamenta a igualdade democrática. As sociedades devem se articular a partir dos cidadãos, não dos consumidores. Isto está ligado diretamente à qualidade do debate público e aponta a construir democracias sérias e responsáveis, que rechacem o populismo e a falta de transparência no manejo dos assuntos públicos e saibam dizer "não" quando as prioridades e os recursos assim o exijam. O que estamos vendo na América Latina de hoje não é conseqüência de um fracasso da democracia nem de determinados delineamentos econômicos. Mas devemos assumir que não fomos capazes de sustentar com a mesma força a necessidade de impulsionar políticas econômicas sérias em paralelo a políticas sociais inadiáveis. Esta é a única via para superar os riscos sociais instalados entre nós a partir da globalização e, ao mesmo tempo, dar qualidade à democracia e igualdade às sociedades divididas durante séculos. As mudanças vividas nos anos recentes nos convocam a entender os processos de globalização em todas as suas dimensões. Há quem veja nelas apenas os aspectos negativos, outros vêem sobretudo suas oportunidades. A verdade é que a globalização é um processo irreversível e ambivalente que acarreta perigos e possibilidades. A queda do Muro de Berlim foi uma conquista importante da liberdade; no entanto, não fez cair o muro entre ricos e pobres, entre analfabetos e alfabetizados, não fez cair o muro entre os que têm e não têm acesso a oportunidades de educação ou de saúde. Esses muros existem, e esses muros levantam desafios frente aos quais todos somos chamados a atuar. A realidade faz com que, diante da nova ordem mundial, os países da América Latina tenham uma posição ativa . Não queremos uma globalização sem regras porque neste caso as regras serão determinadas pelos mais fortes. O mundo de hoje tem regras, mas muitas delas marcadas por sua origem, depois da Segunda Guerra Mundial. E esta realidade levanta questionamentos: Qual o papel das Nações Unidas de que necessitamos hoje? Onde se debate o futuro? Se for no G-8, qual é a nossa voz no grupo? O que aconteceu com os acordos de Bretton Woods criados para reconstruir a Europa devastada pela guerra? E qual o paralelo entre o mundo econômico de 1944, este de Bretton Woods, com o mundo econômico de 2002 em escala planetária? O Fundo Monetário Internacional surgiu para cuidar dos tipos de câmbio entre os países e promover seu comércio. Hoje seu papel é muito diferente e torna inevitável a pergunta: Quando e onde debateremos estes novos poderes do FMI? Diante do terrorismo, o mundo conheceu a maior coalizão jamais registrada na história da humanidade. Esta coalizão tem diante de si a oportunidade de se interrogar sobre todos os temas que a globalização do século XXI trouxe à realidade contemporânea. Para se avançar na interação, globalização, democracia, igualdade e cidadania é necessário colocar o ser humano no centro de nossas políticas. A grande frente formada diante da ameaça terrorista depois dos atentados de 11 de setembro também tem a possibilidade de atuar em termos positivos, definindo os novos parâmetros de convivência nos quais se inscreva a ação política deste tempo. O terrorismo é um problema global, mas existem outros problemas globais que dão base à instabilidade, desigualdade e injustiça que operam como adubo do terror e da insegurança. Faz-se necessária uma agenda que proponha uma nova arquitetura financeira internacional e seja capaz de proteger outros bens públicos tais como a vigência dos direitos humanos, o meio ambiente, a superação da pobreza e as desigualdades através de instrumentos e regras capazes de proteger os esforços das economias mais fracas. Já é hora de pensar qual a carta social que queremos para reforçar a coesão das sociedades em nível mundial, da mesma forma como foram feitos os pactos nacionais ao longo do século XX, pactos como os que possibilitaram o êxito econômico e o fortalecimento da democracia na Europa devastada pela Segunda Guerra. Por sua parte, as forças do mercado descobrem dia a dia como suas estratégias de crescimento requerem um ordenamento institucional baseado em valores e uma coesão social efetiva. Desafios desta envergadura exigem a criação de condições internacionais que compensem as relações assimétricas de poder que hoje caracterizam o mundo global. Nenhum Estado, nem sequer o mais poderoso, pode fazer frente unilateralmente aos grandes objetivos do mundo atual. Se isto vale para as superpotências, para países como os nossos a cooperação internacional é assunto de sobrevivência. A alternativa é desenvolver uma globalização de melhor qualidade e na qual nossos países também possam estar presentes, sentando-se à mesa com méritos renovados. Mas, para poder falar ao mundo, temos que fazer nossa tarefa de casa. Para que sejamos escutados lá fora, devemos ter a autoridade conquistada com base no que fizemos aqui dentro. Não serve de desculpa, para não fazermos as tarefas em nossa realidade, levantar o indicador contra um mundo que ainda não está reordenado. Há políticas públicas que não podemos evitar se quisermos fazer da América Latina um espaço de democracia sólida e profunda. A partir desta vitalidade, e unindo nossas vozes em uma só voz potente, poderemos impulsionar - mediante mecanismos ou iniciativas multilaterais em escala regional ou mundial - uma agenda que ofereça soluções globais a problemas também globais, que de uma ou de outra forma já se instalaram em nossos países, em nossas cidades e em nossos muros."

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