Para acadêmicos, leis especiais não suprimiram democracia

Estudiosos contestam tese de falta de legitimidade de julgamentos baseados em legislação de exceção

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Por Andrei Netto e Roma
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Entre 1975 e 1986, em meio aos anos de chumbo marcados por uma série de atentados de extrema direita e esquerda, que vitimaram perto de 300 pessoas, o Estado italiano adotou duas grandes leis de exceção: Reale e Cossiga. Nenhuma delas, contudo, dizem acadêmicos consultados pelo Estado na Itália e na França, representou o enfraquecimento das liberdades democráticas no país. O argumento é um dos usados por Cesare Battisti para justificar sua atuação nos anos 70 e para atacar a legitimidade dos julgamentos aos quais foi submetido nos anos 80, que resultaram em sua pena de prisão perpétua. As "leis de exceção", como ficaram conhecidas, visavam a desestimular atentados terroristas por meio da ampliação dos recursos da polícia e da restrição de algumas liberdades individuais. O primeiro destes textos, a Lei Reale, de 22 de maio de 1975, autorizou a polícia a investigar e prender suspeitos sem mandado do juiz de instrução. Em 15 de dezembro de 1979 - auge da tensão social, após a execução do ex-primeiro-ministro Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas -, o Decreto-Lei Cossiga aumentou o tempo de prisão preventiva para delitos ligados ao terrorismo, além de autorizar escutas telefônicas. A distensão do marco legal contra o terrorismo só veio com a Lei Gozzini, datada de 10 de outubro de 1986. No mesmo sentido, seguiram-se textos em 1987 e em abril e dezembro de 1990, todos marcando paulatinamente o fim das chamadas leis especiais e reduzindo o tempo de prisão preventiva de suspeitos. Nos anos 70, a atividade intensa de grupos extremistas armados, somada à histórica ação da Máfia e da Camorra, contribuíram para que a imagem do país fosse manchada. Mesmo com o endurecimento da legislação, contudo, afirma Marc Lazar, historiador e cientista político francês do Instituto de Estudos Políticos de Paris e da Universidade Luiss, de Roma, todas as instituições políticas italianas funcionavam dentro dos princípios do Estado Democrático de Direito. "Houve medidas duras. Algumas delas restringiam liberdades individuais, mas sempre foram controladas pelo Parlamento e reguladas pelos poderes públicos", assegura. "Não podemos comparar a Itália dos anos 60, 70 e 80 aos regimes de exceção ou aos tribunais especiais, como houve na América Latina, por exemplo." Para Luigi Bonanato, professor de Relações Internacionais da Universidade de Turim, autor de ensaios e livros sobre os anos de chumbo, o país não fugia à regra dos países desenvolvidos da Europa. "A Itália era uma democracia como todas as outras de seu tempo no Ocidente, com virtudes e defeitos. Os grupos terroristas desejavam criar uma tensão pré-revolucionária, mas não vivíamos uma guerra civil", afirma. "Mesmo de um ponto de vista ideológico extremo, seria patético afirmar que não éramos uma democracia." Lazar e Bonanato têm visões dissonantes no que diz respeito aos julgamentos realizados então. Ambos asseguram que juízes e promotores tinham liberdade de ação. Lazar evita comentários aprofundados sobre o assunto, por não ser jurista. "Não posso afirmar se foi um julgamento sereno ou não. Mas outros foram julgados pelos mesmos tribunais e, à luz das mesmas leis, cumpriram ou estão cumprindo as suas penas." Bonanato, por outro lado, lembra que a lei que instituiu a delação premiada instigou terroristas a entregar seus comparsas, deturpando parcialmente o procedimento jurídico normal. "Era uma lei absurda, mas que alcançou imenso sucesso", lembra. Além disso, entende o especialista italiano, a opinião pública acabou lançada contra Battisti. "Não sabemos se ele é inocente ou não", alega Bonanato, para quem o ex-militante deveria ficar no Brasil, e a Itália, seguir seu rumo. "Uma pessoal como Battisti não merece mais do que o esquecimento."

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