''''País vê o último episódio da transição democrática''''

Luiz Felipe de Alencastro: historiador. Alencastro diz que processo iniciado com FHC estava incompleto e considera Jobim com consistência política para concluí-lo

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Por Gabriel Manzano Filho
Atualização:

Com poucas semanas no governo, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, está completando "o último episódio da transição para uma sociedade democrática no Brasil", afirma o historiador Luiz Felipe de Alencastro. Pois o que sobreviveu até aqui, segundo ele, foi "um desenho institucional extravagante" no qual ainda existiam na prática os três ministérios - Aeronáutica, Exército e Marinha - mais o Estado-Maior das Forças Armadas, além do Gabinete Militar. "Faltava alguém, na Defesa, que tivesse consistência para essa tarefa", diz Alencastro. O historiador, que vive em Paris, onde dá aulas de História do Brasil na Sorbonne, refere-se à firme ocupação política do ministério e ao modo como Jobim "segurou" os comandos militares depois do lançamento do livro Direito à Verdade e à Memória, há dez dias. Numa breve temporada no Brasil - ele veio a convite da Feira Literária de Paraty (Flip), em julho - Alencastro acompanhou de perto, também, o congresso do PT e o julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal, além de participar de congressos e palestras em várias capitais. Nesta entrevista ao Estado ele diz, ainda, que o venezuelano Hugo Chávez "meteu o dedo numa engrenagem fatal, a Assembléia nacional sem representantes da oposição e o projeto de reeleição perpétua". Na outra ponta, acredita que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não será candidato em 2010. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, falou duro e enquadrou, na semana passada, lideranças militares insatisfeitas com o governo por causa do livro sobre torturas durante o regime militar. Como o sr. vê esse episódio? Acho que estamos assistindo, no momento, ao último episódio da consolidação, de fato, da sociedade democrática no Brasil. O País tinha antes uma anomalia institucional, com a existência de três ministérios militares, mais um Estado-Maior das Forças Armadas e ainda uma Casa Militar. Era um desenho institucional extravagante, que não fazia sentido. Esse processo de transição começou com o presidente Fernando Henrique Cardoso, mas permanecia incompleto. Jobim parece ser o ministro com consistência política para levá-lo até o fim. O Supremo Tribunal Federal acolheu a denúncia do mensalão, que transformou em réus algumas importantes figuras políticas do País. A medida contribui, também, para um melhor equilíbrio entre os poderes, contendo os avanços do Executivo sobre os demais? Acho que o Executivo brasileiro não é tão forte assim, mesmo quando comparado aos das velhas democracias. Mas, sem dúvida, o julgamento do mensalão no STF marcou data. Ao contrário do que havia feito em passado recente, quando endossou o Plano Collor, o Supremo deu um basta nas práticas ilegais e na complacência com a corrupção e o abuso de poder. O sr. acredita que, se houver pressão por um terceiro mandato, Lula aceitará ser candidato? Penso que Lula não será candidato em 2010. Para isso, seria preciso encaminhar ao Congresso uma nova emenda, cuja votação seria longa e duvidosa. Em 1997, quando foi aprovada a emenda da reeleição, o presidente Fernando Henrique gozava de folgada maioria parlamentar. E ele ainda podia sacudir a candidatura petista, em 1998, como um espantalho para arregimentar os setores da opinião pública e do Congresso que temiam Lula na Presidência. Nada disso acontece agora. Não existe no horizonte político, ao alcance de Lula, nenhum candidato oposicionista que funcione como espantalho. Há uma farta discussão, hoje, sobre méritos e deméritos do Bolsa-Família, que melhora a vida dos excluídos, mas não serve como projeto nacional. Qual o seu balanço a respeito? Apóio os programas sociais do governo Lula e, em particular, o Bolsa-Família, cujo mérito foi salientado em recente editorial do Estado e nos relatórios de organizações internacionais. É óbvio, porém, que esses programas não constituem um projeto nacional e nem perdurarão como projeto de governo se não alavancarem uma formação profissional e inserção no mercado de trabalho. Além de o Brasil viver uma crise ética e o esvaziamento dos partidos, a classe média se sente abandonada e pagando a conta nos impostos. A queixa é procedente? A classe média se sente escorchada porque paga impostos que não geram retornos concretos - escola, saúde, segurança - de parte do Estado. Assim, ela paga o imposto e paga de novo para obter os benefícios. Isto posto, o Brasil atravessa uma transformação social importante e, ao lado da "velha" classe média gerada pelas condições favoráveis (aposentadorias integrais e tempo de serviço relativamente curto, BNH, correção monetária, ensino e bolsas universitárias generosas, etc) dos anos 1950-90, surge agora uma "nova" classe média nascida no período pós-inflacionário inaugurado pelo Plano Real. Talvez a insatisfação da coisa heterogênea chamada classe média tenha também a ver com uma mudança interna, com uma alteração do perfil histórico brasileiro desses segmentos sociais. Uma reforma política melhoraria o horizonte, para a ética e para esses cidadãos? Quanto ao quadro político, estou de acordo com o ex-presidente Fernando Henrique, que salientou recentemente a necessidade de implantar o voto distrital para reduzir os escândalos eleitorais brasileiros. Como está não pode ficar. Os eleitores paulistas, por exemplo, estão sub-representados na Câmara Federal. O federalismo brasileiro precisa ser repactuado. Em seu recente congresso, o PT evitou discutir o mensalão e deixou a impressão de que está pendurado na força do presidente Lula. Essa crise é um problema do PT ou, em geral, dos partidos de esquerda, em todo o mundo? De fato, depois do mensalão o PT ficou mais pendurado ainda no prestígio de Lula. No entanto, continua sendo o único partido implantado em todo o território nacional com um número importante de filiados. Este 3º Congresso contou com a participação de 190.000 filiados nas etapas municipais e regionais. Não é pouca coisa. Mas o socialismo democrático e a social-democracia, mesmo nos seus bastiões históricos mais fortes da Europa, passam por uma crise ideológica sem precedentes. No curto prazo, o PT enfrenta o descrédito gerado pelo desgaste de ter virado um partido de governo que não se posiciona sobre questões cruciais e pelo mensalão. Mas penso que a política econômica do governo - agora mais bem-sucedida - é menos questionada que no primeiro mandato de Lula. Como a esquerda poderá sair dessa crise ideológica? Isso tem a ver, no longo prazo, com o papel menos relevante da classe operária, com o declínio do movimento sindical e o questionamento do Estado-Previdência. Ser de esquerda é lutar por justiça social. E a injustiça social é a coisa mais espalhada que há no mundo. No entanto, a idéia de que se pode alcançar a justiça social à custa de ações do Estado chegou a um limite. É preciso buscar novos caminhos, mobilizar a sociedade num ambiente onde atuam os mecanismos de mercado. Nixon tinha dito, no passado, que para onde se inclinasse o Brasil se inclinaria a América Latina. O que há de verdade nisso, hoje? A declaração de Nixon é de 1971, quando a América Latina estava assolada por ditaduras brutais. No meio tempo a URSS desabou, a Índia e a China emergiram como grandes potências, as colônias portuguesas da África ficaram independentes e a América Latina - com exceção de Cuba - democratizou-se. Numa economia globalizada, o Brasil pode e deve buscar alianças fora da América Latina. Quanto aos demais, os presidente Hugo Chávez e Evo Morales têm agora graves problemas internos a gerir. O primeiro meteu o dedo numa engrenagem fatal: Assembléia nacional sem representantes da oposição e projeto de reeleição perpétua. O segundo enfrenta uma crescente oposição popular e uma ameaça de secessão no departamento de Santa Cruz. Na Argentina, Néstor Kirchner organiza sua sucessão numa manobra típica de oligarquias provinciais, escolhendo sua mulher para sucedê-lo. Isso não é bom para a democracia na Argentina e na América Latina. Quem é: Luiz Felipe de Alencastro Nascido em Itajaí (SC), é historiador e cientista político. Ensina História do Brasil na Sorbonne, em Paris, desde 2000 Autor dos livros O Trato dos Viventes: a Formação do Brasil no Atlântico Sul e Rio de Janeiro, Cidade Mestiça

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