Orçamento secreto garante R$ 41,6 milhões a ONG de ex-jogador do Flamengo

Verba para o instituto de Léo Moura supera repasses do governo para confederações de esportes olímpicos; padrinhos dos pagamentos são, principalmente, Luiz Lima e Davi Alcolumbre

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Por Breno Pires e André Shalders
5 min de leitura

Ex-jogador de destaque no Flamengo, o hoje empresário Leonardo da Silva Moura, o Léo Moura, se tornou campeão de recursos recebidos da Secretaria Especial do Esporte do governo federal com uma entidade que promove treinamento de futebol para crianças e adolescentes. Foram liberados ao todo R$ 41,6 milhões para o instituto que leva o nome do ex-atleta nos últimos dois anos por indicação de políticos aliados do Planalto. Mais de um terço (36,5%) do valor foi enviado via orçamento secreto, prática revelada pelo Estadão e usada pelo presidente Jair Bolsonaro para destinar bilhões de reais de dinheiro público a um grupo de parlamentares sem critérios claros, em troca de apoio no Congresso. 

Os padrinhos dos pagamentos à ONG são, principalmente, o deputado bolsonarista Luiz Lima (PSL-RJ) e Davi Alcolumbre (DEM-AP), ex-presidente do Senado. 

Campo do projeto em Teresópolis, no Rio; atividades estão suspensas. Foto: Wilton Junior/Estadão

A quantia destinada ao Instituto Léo Moura entre 2020 e 2021 é quase o dobro do enviado à Confederação Brasileira do Desporto Escolar (CBD), a segunda colocada, com R$ 27,5 milhões. Também supera o que foi enviado a confederações de esportes olímpicos, como a Confederação de Desportos Aquáticos (R$ 9,1 milhões), Ginástica (R$ 8,4 milhões), Vôlei (R$ 8,4 milhões) e Boxe (R$ 7,1 milhões). 

O investimento de R$ 41,6 milhões em uma ONG é considerado descomunal por especialistas em gestão esportiva ouvidos pelo Estadão. O Ministério da Cidadania, ao qual a Secretaria Especial do Esporte está vinculada, diz que os recursos foram indicações de parlamentares, com execução obrigatória, ou seja, sem que o governo pudesse escolher para quem enviar. 

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Questionados, tanto Alcolumbre quanto Luiz Lima defenderam a importância do projeto e negaram irregularidades. Ambos exploram eleitoralmente a iniciativa ao terem suas imagens expostas em banners e em eventos de divulgação das atividades realizadas.

A principal ação do instituto é um projeto de escolinhas de futebol chamado Passaporte para Vitória, que atende, segundo a entidade, 6,6 mil jovens de 5 a 15 anos no Rio e no Amapá – o plano é expandir para 30 mil. As inscrições são feitas por ordem de chegada, sem critério social. A ONG não fornece alimentação nem transporte.

A verba é usada para a manutenção dos espaços e pagamento de funcionários, além da compra de chuteiras, caneleiras, uniformes e até um tipo de paraquedas especial usado em treinamentos para dar resistência a atletas, a R$ 80 a unidade – na internet é possível encontrar item semelhante por R$ 54. Ao todo, 1,6 mil paraquedas custaram R$ 128 mil. 

No Amapá, 15,6 mil pares de chuteiras e caneleiras foram comprados para atender as seis mil crianças, ao custo somado de R$ 2,1 milhões. O Estado recebeu ano passado 20 escolinhas com os repasses de Alcolumbre, que destinou R$ 15 milhões à entidade via emenda de relator – base do orçamento secreto. Só na capital, Macapá, funcionam quatro unidades. Léo Moura esteve na cidade quando as atividades começaram, em julho, e posou para fotos ao lado do senador, que divulgou as imagens em seu Facebook. 

Os repasses para o instituto, no entanto, começaram antes, por meio de emendas do deputado Luiz Lima, ex-nadador olímpico e ex-secretário nacional do Esporte no governo de Michel Temer. Lima enviou, em 2020, R$ 5,2 milhões para bancar 15 núcleos no Rio, cada um com capacidade para atender até 300 crianças. A foto e o nome do deputado aparecem em banner do Passaporte Para Vitória numa rede social. 

O Estadão esteve em duas das unidades na última quinta-feira, uma em Teresópolis (RJ) e outra em Macapá. Na primeira, as atividades estão suspensas desde novembro e os responsáveis afirmaram que ainda esperam liberação de recursos para retomar as aulas.

No local há apenas um campinho de futebol com menos da metade das dimensões oficiais, sem marcações e grama só nas laterais. Segundo vizinhos que não quiseram se identificar, duas balizas sem rede, também fora do padrão, e um contêiner foram as únicas benfeitorias trazidas pelo projeto ao campo, que já existia.

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Em Macapá, por sua vez, um pequeno grupo de crianças participou das atividades na manhã de quinta num campo de grama sintética, bem conservado, com grades novas e iluminação, na orla do bairro Santa Inês, próximo ao centro.

A ONG terminou 2021 tendo utilizado apenas R$ 5 milhões das verbas federais que efetivamente já caíram em sua conta. Apesar disso, novos aportes estão a caminho. Em 23 de dezembro, o presidente do Instituto Léo Moura, Adolfo Luiz Costa, enviou ofício ao relator-geral do Orçamento, senador Márcio Bittar (PSL-AC), pedindo a liberação de mais R$ 7,032 milhões, “tendo em vista a importância social e o alcance desse trabalho”. Segundo Léo Moura, o dinheiro adicional, que ainda não foi liberado por questões burocráticas, também foi intermediado por Alcolumbre para o Amapá.

Comparação

Os R$ 41,6 milhões em repasses ao Instituto Léo Moura representam 11% dos R$ 374,7 milhões destinados pela Secretaria Nacional de Esportes desde 2019 para projetos esportivos. A cifra supera o investimento que 24 Estados e o Distrito Federal fizeram, individualmente, no esporte, em 2020. Apenas Bahia e São Paulo aplicaram mais recursos, segundo dados obtidos pela ONG Contas Abertas a pedido do Estadão.

O volume aplicado na entidade do ex-lateral do Flamengo é “extraordinário”, na opinião de Katia Rúbio, professora da Faculdade de Educação da USP. “É quase um terço da verba pública do Comitê Olímpico Brasileiro, e muito além do que grandes federações recebem. Isso causa estranhamento”, disse a coordenadora do grupo de estudos olímpicos da USP.

A dificuldade na captação de recursos públicos, por sua vez, foi uma das razões que levou ao fim do Instituto Passe de Mágica, criado pela ex-jogadora de basquete Magic Paula. Fundado em 2004, a entidade fechou as portas após 16 anos de atividades, em dezembro de 2020. Segundo o ex-diretor executivo do projeto, Ismar Barbosa, a cada ano era mais difícil conseguir dinheiro via Lei de Incentivo ao Esporte. “Após uma análise envolvendo a diretoria e conselho do IPM, foi decidido em 2018 pela descontinuidade progressiva dos atendimento, culminando no encerramento ao final de 2020”, disse Barbosa.

Para o ex-ministro do Esporte Ricardo Leyser, a concentração de recursos na ONG faz parte do contexto da extinção do Ministério do Esporte e do enfraquecimento das políticas públicas de esporte e lazer. “Você acaba atribuindo a entidades que não têm uma relevância esportiva significativa no cenário nacional um papel de protagonista.”

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Padrinhos

Alcolumbre justifica que, além de atender crianças e adolescentes em todos os municípios do Amapá, o projeto gera empregos. O senador disse ainda que as emendas de relator-geral estão previstas nas leis orçamentárias e possuem “total transparência”. “O Legislativo e o Judiciário já chegaram a um consenso no aperfeiçoamento da legislação, garantindo maior controle e participação social.”

O deputado Luiz Lima, por sua vez, afirmou que a sua ligação com o projeto é antiga e que a marca Passaporte Para Vitória, inclusive, foi criada por seu chefe de gabinete e, depois, associada ao Instituto Léo Moura. / COLABOROU MÁRCIO DOLZAN

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