PUBLICIDADE

OAB tem que ser coerente com sua história, diz conselheiro que propôs cotas

Único conselheiro federal da Ordem que se autodeclara negro, André Costa apresentou proposta de reserva de 30% dos cargos da instituição para advogadas e advogados negros

Por Fernanda Boldrin
Atualização:

Primeiro de sua família a ter curso superior, o advogado eleitoralista André Costa é atualmente o único entre os 81 conselheiros federais da Ordem dos Advogados do Brasil ( OAB) que se autodeclara negro. Com o intuito de mudar este cenário, ele apresentou à instituição uma proposta de reserva de 30% dos cargos da OAB para advogadas e advogados negros, por um período renovável de 30 anos.

Conselheiro federal da OAB, André Costa apresentou proposta de reserva de 30% dos cargos da instituição para advogadas e advogados negros Foto: Natália Rocha/OAB-CE

 

PUBLICIDADE

Costa relembra momentos em que a Ordem já atuou em prol de cotas raciais na esfera pública, como quando a instituição defendeu a reserva de vagas para negros no ensino superior e no funcionalismo. Agora, ele cobra da entidade a mesma postura internamente. “A OAB tem que ser coerente com a sua história”, defende Costa, em entrevista ao

Estadão

. “Por que você precisa de 30% de advogados negros e advogadas negras nos cargos da OAB? Porque, hoje, você não tem os 30%.”

Para que a proposta de reserva de vagas para negros possa ser aplicada já nas próximas eleições da entidade, é necessário que a medida seja aprovada até novembro, um ano antes da votação. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Por que o sr. defende cotas para negros nos cargos da OAB?

Publicidade

Porque a OAB não conseguiu resolver seu racismo institucional. A OAB tem que ser coerente com a sua história, quem defendeu cotas lá fora tem que criar mecanismos para estabelecer cotas internamente. Como maior entidade de classe do mundo, a OAB tem que ser um exemplo para as outras instituições. Eu sei que a OAB não é racista, mas vivemos numa sociedade que é. A OAB precisa ser antirracista, tem que combater o racismo institucional. Sem cotas, você não consegue colocar os advogados negros e negras nas chapas (

para as eleições internas

). A questão é simples: por que você precisa de 30% de advogados negros e advogadas negras nos cargos da OAB? Porque, hoje, você não tem os 30%.

Por que 30%?

PUBLICIDADE

É um porcentual razoável para começar a reparar a histórica exclusão dos advogados negros e das advogadas negras no sistema OAB. O ideal era que fosse 50%, mas poderia causar muita resistência. A cota é uma meta, é o mínimo que tem que ter.

Que tipo de resistência a proposta enfrenta hoje?

Ninguém do Conselho Federal me disse que a proposta estava fora de lugar. Mas, nesses projetos, as resistências são silenciosas - quando a pessoa simplesmente age como se a proposta não existisse. Outra forma de resistência é quando defendem que essa norma não seja impositiva. Uma terceira resistência, externa, parte de um desconhecimento. Minha proposta tem sido divulgada nas redes sociais e vi críticas dizendo que é um absurdo eu defender cotas no exame da OAB. Não estou defendendo cotas raciais para o exame da OAB, estou defendendo cotas para a ocupação de cargos na estrutura da entidade.

Publicidade

Como uma maior presença de negros pode mudar a atuação da entidade?

Quando você tem negros ocupando esses espaços, você tem possibilidade de direcionar a OAB nas suas políticas institucionais. A promoção da justiça social, que é uma finalidade da OAB, passa pelo combate às desigualdades raciais. A presença de um negro ou de uma negra no espaço que foi naturalizado para não ser dele já é uma revolução. Que importância tem um negro lá? A importância simbólica, de uma criança olhar e pensar 'ele chegou lá, eu posso chegar também'.

A proposta pode provocar mudanças mais amplas na Justiça?

Uma grande mudança. A OAB indica ministrospara o Tribunal Superior do Trabalho (

TST

), para o Superior Tribunal Militar (

STM

Publicidade

), e para o Superior Tribunal de Justiça (

STJ

). Indica conselheiros para o Conselho Nacional de Justiça (

CNJ

) e para o Conselho Nacional do Ministério Público (

CNMP

); indica desembargadores estaduais e desembargadores federais; e tem também o poder de entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (

Publicidade

ADI

) ou Ação Declaratória de Constitucionalidade (

ADC

) para barrar ou fazer valer uma Lei. Tem a força de, através do Judiciário, movimentar discussões sobre políticas públicas. Olhe a força dessa instituição. Imagine ter pessoas negras indicadas para esses cargos, participando dessas deliberações. Obviamente que seria uma força para combater o racismo institucional e estrutural no Brasil.

O sr. já sofreu racismo na Ordem?

Não. Eu nunca fui discriminado na OAB. Você não tem manifestações de racismo individual. A questão é o racismo institucional. Só eu estou lá (

no Conselho Federal

Publicidade

) como negro.

Recentemente, o TSE determinouque, a partir de 2022, recursos de campanha nas eleições do País sejam divididos proporcionalmente entre candidatos negros e brancos. O Judiciário tomou a frente do combate ao racismo no Brasil?

A

declaração do TSE

é histórica, porque teve o reconhecimento oficial de que o Brasil não vive o mito da democracia racial. Podemos citar rapidamente as últimas conquistas para a população negra: o STF decidiu que as cotas são constitucionais para o ensino superior, para o serviço público e para as Forças Armadas. Em 2015, o Conselho Nacional de Justiça baixou uma recomendação para que os concursos públicos da magistratura tenham 20% de vagas para negros. Em 2017, o concurso nacional da magistratura trabalhista tem vagas destinadas para negros. Este ano, o STF decidiu que não podiam ser feitas operações policiais nos morros cariocas durante a pandemia. Não tenho a menor dúvida de que o Judiciário, inclusive com a decisão do TSE, tem estado à frente do Congresso. O Parlamento tem um déficit na luta contra a desigualdade racial.

E o Executivo? A atuação do presidente Jair Bolsonaro é um entrave para a pauta de igualdade racial?

O problema não é só o atual presidente da República, mas toda uma concepção que ele arrastou para a sociedade e para o governo. Dificulta a discussão. Basta ver o discurso do presidente da Fundação Palmares, que não faz uma declaração para reconhecer a desigualdade racial existente no País. No Brasil, o racismo não é apenas uma questão moral, é uma questão estrutural. Nesse governo, faltam políticas específicas que promovam a inclusão das pessoas negras.

 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.