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O terceiro sacrifício de Guapé, a cidade afogada

Por Agencia Estado
Atualização:

A cidade de Guapé, localizada no sudoeste de Minas, vive o terceiro sacrifício de sua história. Ao contrário da traumática experiência a que foi submetida no início da década de 60, quando a Praça da Matriz foi encoberta pelo lago da Hidrelétrica de Furnas, o que assusta os guapeenses hoje é a redução do nível das águas da represa. A seca já fez reaparecer a antiga praça, e ameaça o município com a perspectiva de um novo período de decadência. Pior do que ficar sem luz é perder o fluxo turístico, que a partir dos anos 90 se anunciava como a redenção para a cidade. De acordo com o prefeito José Rogério Lara, a recuperação dos investimentos nesse setor, parados há três anos, poderá fazer do turismo a terceira fonte de renda do município, atrás do café e da extração de pedras decorativas, mas superando a produção de leite. O prefeito de Guapé é também presidente da Associação dos Municípios do Lago de Furnas (Alago), que congrega 34 cidades que dependem das águas da represa para a incipiente indústria do turismo. Juntas, as cidades reúnem 1 milhão de habitantes. A entidade foi criada em 1990 com o objetivo de implantar projetos de desenvolvimento sustentável, especialmente no setor de turismo, e a preservação ambiental dos municípios banhados pelo lago. ?A Alago representa uma nova postura dessas cidades diante do lago de Furnas?, afirma Lara. ?Representa a compensação pelo trauma social e pelo sentimento de perda que tomou conta de nossas famílias, quando fomos expulsos de nossas propriedades.? O primeiro sacrifício de Guapé, assim como das demais cidades, foi a perda de suas terras férteis. A usina de Furnas, idealizada pelo ex-presidente Juscelino Kubitschek no fim dos anos 50, provocou a inundação de 206 quilômetros quadrados do município, um terço da área total. Guapé, ou ?caminho na água?, na língua dos antigos indígenas que habitavam as margens do Rio Grande, possuía 15 mil habitantes, 2.700 na área urbana, quando foram fechadas as comportas da represa. Começava a formação de um lago de 1.440 quilômetros quadrados, cinco vezes maior que a Baía de Guanabara, formado pelas águas dos rios Grande e Sapucaí. A inundação trouxe também o que o secretário municipal de Planejamento, José Luiz Laudares, chamou de segundo sacrifício: a evasão das lideranças do município. ?Guapé era uma sociedade bem estruturada?, lembra a professora aposentada Esmeralda Ávila Peres, que morava na praça da Matriz. ?Tínhamos clube, escola normal, colégio, ginásio, cinema, duas bandas de música e muita tradição. Com a inundação, muita gente foi embora, acabaram-se as festas, e nunca mais tivemos cinema.? A professora lembra que durante três anos não houve casamentos em Guapé. A população total caiu a menos de 10 mil habitantes, mas recuperou-se em parte, chegando a 13.266 habitantes, sendo 6.286 na área urbana, segundo o Censo 2000. A prefeitura arrecada hoje em torno de R$ 600 mil mensais. Inspirado pelo dístico de seu brasão, adotado na década de 20 ? ?Flutuat ne mergitur? (flutuar, não afundar) ? a cidade começou a se recuperar do trauma. Depois do retrocesso dos anos 60 e 70, investiu em novas tecnologias agrícolas, aprendeu a produzir no cerrado, desenvolveu a piscicultura e transformou o café em seu principal produto. Porém, a indústria do turismo, que abria novas perspectivas para a região, entrou em decadência antes de se consolidar. Cidade submersa ressurge As ruínas da torre da igreja de São Francisco de Assis, ao redor da qual os cavalos pastam, simbolizam o terceiro sacrifício. A única cidade totalmente submersa foi São José da Barra, que possuía cerca de mil habitantes na área urbana. Foi reconstruída nas imediações da hidrelétrica, a 80 quilômetros de Guapé. Hoje com 6 mil habitantes, sendo 1.652 na área urbana, de acordo com o Censo 2000, São José da Barra é uma das integrantes da Alago. Na Velha Barra, como os antigos moradores a chamam, nem os mortos ficaram. O agricultor Expedito Domingues Alves, 71 anos, que mora em Passos, maior cidade da região, localizada a 30 quilômetros de Furnas, lembra-se do movimento no cemitério, às vésperas da inundação. ?Antes de sair, escavamos as sepulturas para salvar os restos dos parentes?, conta. ?Trouxemos várias caixas de ossos para o cemitério de Passos.? João Bento Filho, 59 anos, utiliza eletricidade em sua torrefação de café, mas defende o desligamento total da Hidrelétrica de Furnas ?durante uns 15 dias?, para recuperar o nível do lago. Na década de 60, ele morava no centro de Guapé, na rua 3 de Fevereiro, data da emancipação do município, em 1923. Conhecedor de cada metro quadrado da área inundada, ele se lembra ainda da pequena usina elétrica construída pelo fazendeiro Idelfonso Antônio do Carmo, em sua propriedade nos fundos da Igreja de São Francisco de Assis. O fazendeiro não dependia da energia fornecida pela usina do Paredão, localizada a cerca de 20 quilômetros do centro, que nessa época abastecia toda a cidade. Desativada depois que Furnas entrou em funcionamento, a pequena usina passou a compor o Parque Ecológico do Paredão, que possui cachoeiras e piscinas naturais. Agora, a prefeitura pretende agora adquirir novas turbinas e recuperar a usina, para afastar o fantasma do corte em razão da crise de energia. Atualmente, Guapé recebe energia elétrica das Centrais Elétricas de Minas Gerais (Cemig). Na zona rural, 30% das propriedades ainda não são eletrificadas. ?O governo de Minas tem desenvolvido planos de expansão da eletrificação rural?, informa o secretário municipal de Planejamento, José Luiz Laudares. ?Mas, com a crise, esses planos devem ser paralisados.? A cidade de Formiga, 61 mil habitantes, teve 12% de suas terras inundadas. Seu prefeito, Juarez Eufrásio Carvalho, vice-presidente da Alago, prevê para este ano um prejuízo de R$ 10 milhões para a prefeitura e iniciativa privada. ?Com a redução do nível do lago, perdemos em arrecadação de ICMS e em royalties pagos pela usina. O turismo caiu e os agricultores não podem fazer irrigação?, lamenta ele. Já em São João Batista da Glória, 5.300 habitantes, o maior problema é com o escoamento da produção. O município produz 100 mil litros de leite por dia. No final de maio, a balsa que faz a travessia para Passos, a cerca de 10 quilômetros abaixo da barragem, encalhou no Rio Grande com uma carreta que levava 35 mil litros. O prefeito Ivanir Rodrigues Ferreira foi obrigado a solicitar à chefia da hidrelétrica que fosse aumentada a vazão do rio. A balsa é a principal via de acesso à cidade, que tem investido pesado em ecoturismo. No hospital local trabalham nove médicos, todos de Passos. Se a balsa parar, eles terão que trocar a rodovia de 18 quilômetros que liga as duas cidades através do rio por 150 quilômetros de estrada de terra. ?A seca é um desastre?, conclui Ivanir Ferreira. Leia também: Lago de Furnas recebe dejetos de 34 cidades Reservatório fornece água para oito hidrelétricas Balneários próximos a Furnas perdem sócios

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