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O impeachment e a esquerda

A condenação da presidente Dilma Rousseff e o abreviamento de seu mandato encerram um ciclo de governos de esquerda no Brasil que começou em 2003. A maneira como esse ciclo está sendo encerrado por meio de um processo de impeachment com fortes dúvidas legais e no qual importantes testemunhas técnicas acabaram impedidas por suspeição, impossibilita um balanço claro sobre o seu resultado global. Ainda assim, parece necessário avaliar o legado que o governo de esquerda deixará ao País e à continuidade de um projeto de esquerda no Brasil.

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Por Leonardo Avritzer
Atualização:

Para proceder a uma avaliação do período é necessário diferenciar “PT governo” do “PT partido” e trabalhar a dimensão da relação entre o PT e outras forças de esquerda. No que diz respeito ao PT governo, vale a pena levantar a cabeça da crise que se abateu sobre o País e pensar nos pontos positivos dos governos Lula e Dilma. Eles foram capazes de implementar diversas políticas sociais com importante impacto na redução da pobreza e da desigualdade. O Brasil foi reconhecido por diversas instituições internacionais como tendo reduzido a desigualdade de forma politicamente desejável e economicamente eficiente. Nesse sentido, o objetivo maior de uma política de esquerda se cumpriu, o Estado mostrou que pode ser instrumento de redução da desigualdade, de produção da diversidade social.

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No que diz respeito ao PT partido, o balanço deve ser muito mais nuançado. Durante o período acima mencionado, a legenda não conseguiu desenvolver no Congresso uma política que associasse a sua crítica às práticas tradicionais com a sua necessidade de garantir a governabilidade. Pelo contrário, o partido se inspirou na política tradicional de financiar o sistema político por meio do Estado e das estatais e levou essa proposta ao paroxismo.

Ao aderir ao financiamento ilegal de campanha, o PT mudou a correlação de forças entre os seus diferentes setores e perdeu a capacidade de eleger representantes de movimentos sociais para a Câmara. A atual bancada federal é de baixíssimo nível, o que fez com que a liderança do movimento contra o impeachment ficasse nas mãos do PCdoB e do PSOL, por absoluta incapacidade de a bancada do PT na Câmara liderar esse processo. Cabe agora ao PT realizar uma ampla autocrítica. O ideal seria que a liderança, em especial o presidente Rui Falcão, caísse e o PT voltasse a ter um presidente que não fosse representante da máquina política. O PT necessita de um presidente representante das ruas, dos movimentos sociais e de um projeto de aprofundamento democrático e de reforma do sistema político.

Por fim, resta o tema da relação do PT com os movimentos sociais. O governo Temer expressa uma coalizão perversa entre as corporações do Estado, em especial o Judiciário e o Ministério Público, e um sistema político que não representa ninguém, constituído por deputados cujo único objetivo é fazer negócios. Essa é uma coalizão entre duas formas de predação do Estado: uma antiga, o patrimonialismo, e uma nova, o corporativismo das elites estatais.

A resistência dos movimentos sociais a uma proposta neo-oligárquica de rearticulação do Estado deve marcar a reorganização da esquerda no próximo período. Do ponto de vista partidário, vão crescer aqueles partidos que consigam se associar a esse movimento de defesa de Estado social comprometido com uma agenda de direitos e que consigam articular essa defesa com uma bancada no Congresso que não esteja a cargo de interesse privados e antidemocráticos. O PT vai se renovar na medida em que consiga se reorganizar para liderar esse processo. Outros partidos de esquerda disputarão espaço com o PT, principalmente o PSOL e a Rede. O mais provável é que se reduza a hegemonia petista sobre a esquerda brasileira e tenhamos um melhor equilíbrio de forças. *PROFESSOR TITULAR DE CIÊNCIA POLÍTICA DA UFMG. É AUTOR DE IMPASSES DA DEMOCRACIA NO BRASIL (ED. CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA)