Caro leitor,
No dia em que Jair Bolsonaro entrou no imponente pátio da Academia Militar das Agulhas Negras, em Rezende (RJ), talvez, tenha se impressionado com o lema: “Cadetes: ides comandar. Aprendei a obedecer”. Parte de seus ministros e assessores teve a mesma experiência. Todos estão familiarizados com os manuais do Exército.
Há o C-124 para estratégia, mas o presidente, que foi o 18º colocado entre 65 cadetes da Arma de Artilharia, não parece encontrar com facilidade os caminhos e atalhos para um porto seguro nessa área. Talvez não conheça nenhum “Cabral” – o Queiroz, então, deixa pra lá... A terminologia militar é autoexplicativa. O leitor não tem obrigação de dominá-la, mas o presidente sabe do que se trata.
Vamos ao manual. Nada mais importante do que entender e respeitar o que ele diz. O C-124 devia estar na cabeceira de Bolsonaro, como de qualquer chefe que deseje liderar um governo. Como nunca passou da patente de capitão, talvez o presidente não tenha tido a oportunidade de explorá-lo com vagar, como o fazem os alunos da Escola de Comando e Estado-Maior (Eceme).
O general Marcello Rufino dos Santos foi o responsável pelo documento. Se o examinar, Bolsonaro verá que ele alerta para “a crescente vulnerabilidade dos Estados a interferências externas; para o aumento da importância de atores que não representam Estados, tais como organizações internacionais, organizações não-governamentais, empresas multinacionais e grupos de interesse, cujas influências ultrapassam as fronteiras nacionais; e para o elevado grau de interdependência entre todos os atores”.
A crise da Amazônia está, pois, explicada em três linhas do manual. A soberania não é absoluta no mundo do século 21. O mesmo documento diz que não se deve escalar uma crise sem que isso faça parte de uma estratégia. E aqui um assessor especial do presidente, o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, parece ter esquecido o ensinamento do manual que leu quando fez o curso da Política e Estratégia e Alta Administração do Exército.
Ao tuitar na sexta-feira que o presidente francês Emmanuel Macron havia “ameaçado empregar o seu poder militar” - o que não era verdade - contra nossa soberania, Villas Bôas escalou a crise. E contra uma nação que, apesar de seu protecionismo agrícola, é amiga – que o diga a Marinha do Brasil. De fato, o manual e a etiqueta dizem que o general não devia – como assessor do presidente – expressar opiniões sobre política externa.
Se "a estratégia é a arte de preparar e aplicar o poder para, superando óbices de toda ordem, alcançar os objetivos fixados pela política", a pergunta é simples: qual o objetivo que Villas Bôas queria alcançar?Ele fora fixado por quem? Explorar "idéias-força como patriotismo, independência nacional e descolonização" seria parte de uma manobra. Mas é preciso lembrar que, "no momento da eclosão do desafio - diz o manual -, "o nível político será o responsável por definir o comportamento" a ser adotado. Escalar a crise era, portanto, o desejo de Bolsonaro?
Em um governo minimamente organizado, esses temas seriam de alçada dos ministros da Defesa e do Itamaraty. Em vez disso, pululam manifestações em redes sociais de integrantes do Executivo e aliados com termos pejorativos ao presidente francês. Trata-se de mau exemplo. Parecem esquecer que só um presidente responde a outro. Mas o que esperar quando o primeiro mandatário faz troça pública da mulher de Macron? Exigir compostura e etiqueta parece coisa de outro século. Ou, como escreveu Cassiano Ricardo em seus geniais versos em 'Os sobreviventes': “Tudo o que foi ontem é outra era”.
O leitor viu aqui que o comandante do Exército, general Edson Pujol, recebeu a tarefa de apagar o incêndio criado por Bolsonaro. Teve ainda o general de dar uma rara entrevista na sexta-feira à tarde, no Congresso, na qual se dissociou dos termos usados por Villas Bôas. Ele disse: “Para que um País entre em um conflito armado tem de haver uma razão muito forte e tem de ter aceitação da sociedade, do Congresso. A sociedade tem de ver alguma razão para chegarmos a esse extremo de um conflito armado. Não basta um mandatário de uma nação querer”.
Pujol leu o manual. E lembra dele. Sabe que suas regras servem tanto para Macron quanto para Bolsonaro. Tanto para o Brasil quanto para a Venezuela. O comandante se afasta dos guerreiros ideológicos. Da turma que é capaz de acusar o ICMBio de incendiar a floresta para encobrir a própria responsabilidade. Trata-se de manobra antiga. Em 'Anais', Tácito nos conta como Nero culpou os cristãos pelo incêndio de Roma para se livrar das injustas suspeitas que recaíam sobre o imperador.
O comandante mostra que quer deixar o Exército fora das confusões do bolsonarismo. É bom que assim seja. A Força Armada é instrumento de Estado. A política a que deve se subordinar é outra. Não a dos cargos e comissões, dos salões claros e escuros onde se exerce a vaidade e se desgasta o poder. A entrada desta nos quartéis avilta a instituição, destrói o profissionalismo e corrompe os padrões militares.
Pujol decidiu não ter Twitter. E pôs um freio aos que – na ativa – queriam expressar seu partidarismo por meio das redes sociais. O comandante defende, assim, do manual à Constituição. Talvez saiba, como Tácito, que a fraqueza da natureza humana faz com que os remédios sejam menos rápidos do que os males; assim como nosso corpo é lento ao se desenvolver e está sempre pronto para perecer, também é mais fácil sufocar os espíritos, as leis e os estudos do que retomá-los. O historiador pensava em restaurar o "espírito romano". Mas, uma vez degradada, a República jamais se recuperou.