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O debate político faz a chapa esquentar

Intolerância sem limites contamina relações pessoais neste atual momento de polarização

Foto do author Gilberto Amendola
Por Gilberto Amendola
Atualização:

O brasileiro cordial não mora mais aqui. Foi pegar uma praia no Caribe, está criogenicamente congelado ou nunca existiu de fato. Talvez, quem sabe, um Sérgio Buarque de Holanda redivivo pudesse dar conta de explicar esse novo caráter nacional, essa identidade forjada no calor da disputa política, no ramerrame do “Somos todos Moro” ou do “Não Vai Ter Golpe”.

Ânimos acirrados. Manifestantes pró eantigoverno em Brasília durante ato contra a nomeação de Lula na Casa Civil Foto: Ricardo Moraes/Reuters

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No mínimo, o brasileiro cordial aprendeu a odiar. Um ódio que começa com uma quase birra, uma cara feia no elevador ou block no WhatsApp da família – mas que, sorrateiramente, vai se transformando em separações definitivas e, com o perdão da palavra, porrada, cabeçada e cusparada. No limite do limite: desejo de matar.

Pois sim, o dono de um salão de cabeleireiro na rua Senador Feijó, no centro de São Paulo, Sandoval Marques da Silva, de 40 anos, diz que tem um facão guardado no fundo do seu estabelecimento para “recepcionar petistas”. “Se o pessoal senta aqui na cadeira e diz que defende o PT, eu mando embora. Não atendo mesmo. Sai daqui chutado ou...”, diz. Silva também faz bravatas impublicáveis contra Lula e Dilma. É feio, mas pura “garganta”.

Um ódio mais palpável, triste até, foi aquele que levou a sobrinha da dona Maria de Lourdes de Araújo Guerra a não convidar a própria tia para a sua cerimônia de casamento. “A sobrinha que eu peguei no colo, que eu coloquei pra dormir, que dei remédio... Ela não vai me convidar para o casamento dela porque eu defendo o governo Dilma”, desabafa. Parecido com o que o irmão da professora Márcia Santos deve estar sentido. “Nós não nos falamos mais. Ele é um tucano radical. Não quero papo. Estamos de relações cortadas.”

Família. Muitas crises têm nascido no bendito WhatsApp da família – um trauma para muita gente. Num desses grupos, a artista plástica Patrícia Caetano recebeu a singela mensagem de um tio (irmão do pai dela): “Você é uma sujeitinha que não vale nada, nunca lavou uma calcinha”. O motivo da revolta, Patrícia havia se posicionado contra o processo de impeachment.

Taxista. Tem petista que também não alivia. O taxista Gilmar Galeano, com quase 20 anos de praça, gosta de dirigir ouvindo o noticiário pela rádio. Vez ou outra, é verdade, solta um comentário indignado e genérico: “Esse governo é uma vergonha”. Então, foi Gilmar abrir a boca e pronto: a cliente começou a gritar que ele era fascista. “Eu tenho estudo, sei o que é um fascista. Posso ser contra este governo. Mas fascista, não. Fascista eu nunca fui”, fala.

Vizinho. No ambiente corporativo, o ódio também anda vicejando. As amigas Cláudia Arrivabene, de 37 anos, e Raquel Bergaria, de 39, pegaram o elevador da firma com um colega antipetista. Como estavam indo para o ato em apoio ao governo, ouviram uma indelicada pergunta do colega: “Vocês já receberam os R$ 30 pela participação? Já ganharam o vale-lanche?”

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Um pouco mais grave do que uma ironia fora de lugar foi a conversa entreouvida em um café do Jardins. Cinco amigos, empresários, que sem pudor revelaram que preferem evitar contratar pessoas com opiniões políticas diferentes da maioria dos seus funcionários e dos patrões (eles mesmos). O couch de relacionamento Atayde Patreze de Melo Jr. (Sim, filho do mítico Atayde Patreze) foi quem explicou a posição do grupo. “É uma questão lógica. Se defendo o indefensável, pode criar problema no ambiente de trabalho. É uma questão de perfil”, diz.

Por falar em perfil, Patreze Jr. diz que eliminou mais de 100 amigos do seu perfil de Facebook. “Achei melhor. Não queria ficar batendo boca com gente que não tem a ver comigo”.

A velha luta de classes ganhou uma sobrevida daquelas. O engraxate da Paulista, Tiago Landes, de 30 anos, mandou um “comunista de Iphone” para uma cliente que ousou reclamar dos R$ 10 cobrados por uma “coladinha” no bico da bota. Landes ouviu, em retribuição, que era “coxinha, burro e manipulado pela mídia golpista”. Tudo isso por conta de dez contos.

‘Vagabunda’. Na quarta-feira, o casal Lucas Brasileiro, de 21 anos, e Isadora Schautte, de 18, passava de bicicleta vermelha no meio de uma manifestação pró-impeachement. O entrevero entre os ciclistas e os fãs do Sérgio Moro teve cabeçada, cusparada e leves escoriações pelo corpo. “Parecia torcida de futebol. Eles foram intolerantes. A gente só queria passar com a bike”, diz Brasileiro. “Começaram a me ofender como mulher, me chamar de vagabunda”, completa Isadora. Do outro lado, a versão é que o casal teria forçado o enfrentamento e rasgado a bandeira nacional. “Foram eles que provocaram. Xingaram o nosso grupo e ainda cuspiram na gente. Não sou obrigado a ter sangue de barata”, afirma Marcelo Lallo.

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Para sobreviver ao ódio, um minuto de oração. A veterinária Carla Uliam, de 33 anos, foi rezar na Igreja São Luiz Gonzaga, localizada na região de Paulista, e pedir um pouco de iluminação celestial. Isso porque ela estaria com dificuldade em escapar do embate político. “Nem em sarau de poesias a gente está livre”, disse. Veja só o que aconteceu com ela em pleno sarau de poesia, no último Dia Internacional da Mulher, no Parque do Povo, no Itaim-Bibi.

“Os grupos de leitura seriam divididos, certo? Então, a coordenadora pediu que a gente escolhesse o grupo que ficaria do lado direito e o grupo do lado esquerdo, certo? De repente, todas as participantes começaram a gritar: ‘Esquerda! Esquerda!’. Eu falei baixinho: ‘Direita’. Todas viraram a cara para mim”, contou.

Tinder. Mas o ódio, ufa, também pode ser risível. O trio de recepcionistas formado por Juliana, Edilene e Ana Paula, avisou que não querem saber de namorados petistas. “Sem chance. Tem que ser muito bonito pra valer a pena”, comenta Edilene.

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Já no Tinder da publicitária Josiane Marchesini, cinco perguntas básicas antes da dar um match e conhecer um novo pretendente. Acreditem, não está fácil pra quem está solteiro: 1) Você bebe? 2) Qual sua comida favorita? 3) É contra ou a favor da legalização da maconha? 4) Foi na passeata organizada pela Fiesp? 5) Qual é a sua opinião sobre o Lula ser nomeado ministro?

O ambulante Fernando Matoso, de 44 anos, não escolheu lado, aliás, prefere ficar entre os opostos. “Vendi 150 bandeiras, cada uma custa R$ 5. Ou seja, o ódio é deles, não meu.”

Se estamos irmanados em alguma coisa, ainda não é possível vislumbrar, mas que a fogueira das paixões já foi acessa ninguém tem mais paciência para duvidar.