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O bolsonarismo devia seguir o exemplo do papa Francisco

Militares se preocupam com soberania; aliados do presidente usam conceitos do século passado

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Por Marcelo Godoy
Atualização:

Caro leitor,

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Os generais do Planalto estão apreensivos. O começo do Sínodo da Amazônia confirmou alguns de seus temores, como a presença de índios brasileiros na Basílica de São Pedro. As primeiras palavras do papa Francisco reforçaram suas suspeitas. Em sua homilia, o pontífice reafirmou a missão apostólica da Igreja: “Reascender o dom no fogo do espírito é o oposto de deixar as coisas correr sem fazer nada”.

O papa apontou os desafios que serão enfrentados por quem deseja dar voz aos povos da floresta. “Quantas vezes houve colonização em vez de evangelização! Deus nos preserve da ganância de novos colonialismos. O fogo ateado por interesses que destroem, como o que devastou recentemente a Amazônia, não é o do Evangelho.”

O presidente da República, Jair Bolsonaro, no gabinete presidencial Foto: Dida Sampaio / Estadão

Esse “fogo devorador”, de acordo com o papa, alastra-se quando “se quer fazer triunfar apenas as próprias ideias, formar o próprio grupo, queimar as diferenças para homogeneizar tudo e todo”. Nada mais claro. Ali estão os ataques à cultura dos povos indígenas, a tentativa bolsonarista de se criar um “índio do século 21”, bem como a crítica tantas vezes repetida pelo pontífice contra os que rejeitam o diálogo, os que buscam pelo fogo impor suas ideias.

Em entrevista à repórter Tânia Monteiro, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, havia dito que o governo estava preocupado com o fato de o sínodo abordar a situação dos povos indígenas, dos quilombolas e outras pautas que deviam ser exploradas pelo “clero progressista”, um “aliado das agremiações esquerdistas”. Heleno e os militares querem neutralizar o que consideram ser uma ameaça, uma interferência em assuntos internos do Brasil.

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Trata-se de reação semelhante à dos generais dos anos 1970. Vê-se na Igreja o Vaticano, o poder de um Estado estrangeiro. Não se quer enxergar na ação do cardeal d. Claudio Hummes e do papa Bergoglio a “denúncia dos poderes contrários aos desígnios da salvação, postos por Deus para serem cumpridos por todos os homens”.

Desconhecem a atitude soteriológica da Igreja como reação ao desejo de alguns de rejeitar a religião católica como fonte de legitimidade de poder e à tendência de negação de toda transcendência presente na modernidade. Quanto maior a insubmissão da Igreja, mais forte a reação dos poderes que se lhe opõem.

E veem em d. Cláudio um novo d. Vital ou um d. Helder Câmara. Acreditam que o sínodo pode produzir um documento como o Eu ouvi os clamores do meu povo, de 1973 que trazia a assinatura de d. Helder e de outros 12 bispos do Nordeste, afirmando que, assim como Deus se comprometera com a humanidade, cada homem é chamado a se comprometer com seu semelhante, de preferência pelo fraco e pelo oprimido. Não conhecem a história de frei Bartolomeu de las Casas. E seu trabalho missionário há 500 anos, quando nem “esquerda havia.

Antes do Sínodo, porém, buscou-se a détente. Em movimento semelhante ao dos encontros entre o general Antônio Carlos Muricy, um dos próceres do regime militar, com a cúpula católica (relatados pelo historiador Kenneth P. Serbin em Diálogos na Sombra), bispos e o governo ensaiaram uma aproximação. O comandante militar da Amazônia, César Augusto Nardi, esteve com d. Cláudio. O oficial estudou a encíclica Laudato Sí, do papa Francisco, sobre o meio ambiente, e não viu nada ali que “atentasse contra as soberanias nacionais”.

Segundo o ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Santos Cruz, a saída para o governo Bolsonaro, em vez de vigilância ou demonização da Igreja, seria criar sua própria agenda para a Amazônia. O general vê na omissão do governo um risco à nossa soberania. Ele deveria ter reagido antes do Sínodo e da Assembleia Geral da ONU – quando os turibulários do presidente, como o general Heleno, classificaram como “discurso de estadista” a diatribe de Bolsonaro contra o socialismo e os estrangeiros que cobiçariam a Amazônia...

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Se Bolsonaro, Heleno e os militares quiserem entender o que se passa no Sínodo da Amazônia deviam ler a obra Igreja contra Estado, do filósofo e professor da Unicamp Roberto Romano. Romano mostra como a ação do papa reafirma o carisma da instituição, em sua essência de ecclesia semper reformanda. Segue o estilo da constituição pastoral Gaudium et Spes (Alegria e Esperança), que recebera do papa São Paulo VI o subtítulo “Sobre a Igreja no Mundo Atual”.

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Francisco faz o aggiornamento da Igreja em um mundo em que a questão climática assume urgência planetária. Ao lado da pedagogia dos oprimidos, busca-se a “unidade do Povo, nessa assembleia divina e humana pela qual os bispos são responsáveis e a quem a Igreja deve servir”. A Igreja quer dar voz aos despossuídos. Assim, ela procura exorcizar “o perigo de uma sociedade fundamentalmente dividida e abalada pelos conflitos”. E são muitos os que dividem os povos na Amazônia. Francisco vai atrás da miragem do social uno e harmonioso.

Bolsonaro diz que os estrangeiros que falam sobre a Amazônia estão interessados apenas em seus metais. O papa se preocupa com as almas. Querer reduzi-lo a um mero dado empírico da polarização dos dias atuais é desconhecer a Igreja e a forma como ela se relaciona com o mundo moderno. Incapaz de deixar sua lógica binária, o bolsonarismo acusa o papa de esquerdismo. Vive preso às categorias de pensamento do passado. Terá assim algum futuro? A Igreja se atualiza. E extrai do passado e do presente o seu futuro entre os homens.

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