Novo livro faz relato desapaixonado sobre a Lava Jato e lança luz sobre 'zonas cinzentas'

Escrita pela juíza federal Fabiana Alves Rodrigues, obra se debruça sobre ações decorrentes da Lava Jato para fazer uma análise profunda e equilibrada sobre os métodos processuais utilizados na operação

Por Ricardo Galhardo
Atualização:

Para alcançar resultados inéditos que impressionaram o Brasil e o mundo a Operação Lava Jato e a Justiça Federal se aproveitaram de um longo aprendizado em relação às ferramentas legais e processuais de combate à corrupção mas também operaram em uma zona cinzenta que dá margem a questionamentos quanto ao cumprimento de preceitos básicos da democracia como a imparcialidade do Judiciário e a garantia de direitos individuais. 

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Essa é uma das conclusões do livro "Lava Jato - Aprendizado Institucional e Ação Estratégica na Justiça" da juíza federal Fabiana Alves Rodrigues

Substituta na 10a Vara Criminal Federal de São Paulo, especializada em crimes financeiros, a juíza se debruçou sobre as ações decorrentes da Lava Jato para fazer uma análise profunda e equilibrada sobre os métodos processuais utilizados na operação. O resultado foi uma tese de mestrado em ciência política pela Universidade de São Paulo agora transformada em livro que chega ao mercado pela editora WMF Martins Fontes.

Livro 'Lava Jato - Aprendizado Institucional e Ação Estratégica na Justiça', escrito pela juíza Fabiana Alves Rodrigues. Foto: Reprodução/ Editora WMF Martins Fontes

A obra tem dois grandes diferenciais em relação a tantas outras sobre a Lava Jato. O primeiro é o fato de a autora ser juíza federal desde 2009, ou seja, integrante ativa do Judiciário, cujo know-how e experiência ajudaram a enxergar ângulos inéditos da Lava Jato com base em detalhes técnicos como o tempo de andamento das ações, número de testemunhas e réus etc.

O segundo diferencial é que Fabiana não aborda o mérito dos crimes investigados e punidos pela Lava Jato, mas se concentra apenas nos aspectos processuais das ações judiciais. Dados externos aos processos como as conversas entre integrantes da força-tarefa de Curitiba e o ex-juiz Sérgio Moro reveladas pelo The Intercept também foram deixados de lado. O resultado é uma análise desapaixonada da operação que marcou a história do Brasil.

Fabiana deixa claros os avanços institucionais e os resultados incomparáveis da operação na punição aos acusados e recuperação de recursos públicos desviados. A obra, porém, também lança luz sobre os métodos usados pelo Ministério Público Federal, Polícia Federal, Receita Federal e, sobretudo, Justiça Federal para que os resultados fossem alcançados.

A pesquisa aponta que havia um alinhamento entre Moro e os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF-4) e os responsáveis pelas investigação (MPF e PF) para conferir agilidade ou retardar o andamento de processos conforme os interesses dos investigadores; que o timing das sentenças e as prisões cautelares foram usadas para facilitar a obtenção de delações premiadas; que Moro omitiu locais e fatos dos crimes investigados para driblar as normas do Judiciário e manter os processos em Curitiba; que mecanismos foram criados para impedir a apreciação dos acordos de delação por tribunais superiores; que as conduções coercitivas foram instrumento de constrangimento aos investigados; que a força-tarefa usou relações interpessoais para atropelar os procedimentos legais de cooperação internacional e tentar abocanhar R$ 2,5 bilhões em multas pagas pela Petrobrás; que réus e crimes foram ignorados ou deixados em segundo plano para que o foco se mantivesse em alvos pré-estabelecidos.

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O ex-juiz federalSérgio Moroe o procurador da República Deltan Dallagnol lado a lado. Foto: Hélvio Romero/ Estadão

A autora fala em "métodos heterodoxos", "gestão criativa", "quebra de isonomia" e usa palavras como "seletividade", "ocultação", "voluntarismo" e "engajamento" para se referir aos métodos usados pela Lava Jato e as relações entre seus integrantes. Ao conjunto dessas atitudes Fabiana dá o nome de "ação estratégica" da Lava Jato nas "áreas cinzentas" da legislação existentes por dubiedade na redação das leis ou falta de regulamentações.

As ferramentas usadas pela autora para iluminar e organizar o funcionamento da Lava Jato foram o tempo de duração dos processos e prisões cautelares cruzados com o timing das delações, número de testemunhas e réus em cada ação, sentenças e textos publicados pelos principais atores dos processos, informações sobre a história, estrutura e formas de funcionamento da Justiça Federal, a comparação com outros casos rumorosos como o Mensalão e o Banestado e o arcabouço legal que embasou as investigações e decisões. Quase tudo é metodizado em tabelas, gráficos e planilhas. 

O estudo mostra, por exemplo, que em ao menos três processos todos os réus se tornaram delatores e tiveram benefícios da Justiça.

A juíza não questiona a ocorrência dos crimes desvendados pela Lava Jato, mas a forma e os métodos usados para obtenção dos resultados e a postura dos magistrados que, em um sistema democrático, não podem tomar partido a favor ou contra as partes do processo.

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"O elevado interesse na condução de um caso sugere o comprometimento do juiz com o resultado do processo. Isso esbarra num princípio caro às democracias: a imparcialidade daquele que exerce o papel de julgador. O tema é especialmente importante diante da dificuldade de comprovar a parcialidade do juiz", diz ela.

Fabiana dedica todo um capítulo à condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com base na comparação entre o trâmite das ações contra Lula e outros processos tanto na 13a Vara Criminal de Curitiba quanto no TRF-4, ela conclui que magistrados aceleraram a condenação no caso do tríplex do Guarujá para barrar a candidatura do petista à presidência em 2018 e impedir que o ex-presidente fosse eleito, o que inviabilizaria sua punição. Segundo a juíza, a análise deixa claro que Lula era o alvo desde o início da operação e que houve manipulação dos processos contra o petista.

Lula chega de helicóptero à sede da PF, em Curitiba. Foto: Alex Silva/ Estadão

"Dizendo claramente: se a condenação de Lula em segunda instância não tivesse ocorrido a tempo de impedir sua candidatura, a pena imposta ao alvo central da operação não seria aplicada se ele vencesse em 2018. É interessantes destacar que a escolha política dos atores do Judiciário Federal, que, tendo em mãos a opção de deixar sob as rédeas do eleitor o controle político da responsabilidade de Lula sobre os desvios na Petrobrás, optaram por excluir essa possibilidade para fazer prevalecer a caneta dos togados", escreve ela. 

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Leia trechos do livro:

"Apesar de serem numerosas as críticas a aspectos jurídicos da Operação Lava Jato, até o momento nenhuma análise consistente foi capaz de negar a ocorrência dos desvios de recursos públicos (…) sendo assim, não se toma por ponto de partida nem se questiona aqui a ocorrência de tais desvios."

"Algumas características das prisões, colaborações e do ritmo de tramitação das ações sugerem que a prisão preventiva, associada à agilização seletiva das ações criminais foi utilizada como mecanismo de constrangimento à colaboração premiada."

"Da forma e com a velocidade com que foram alcançados esses resultados, isso só foi possível graças ao forte engajamento dos atores do sistema de justiça criminal."

"Depois da manobra de trampolim que levou Sérgio Moro da primeira instância do Judiciário ao primeiro escalão do Executivo federal, a um passo de uma vaga para ministro do STF, pode-se considerar que o episódio da fundação (que ficaria com R$ 2,5 bilhões em multas aplicadas à Petrobrás) foi a segunda mancha na reputação da operação."

"O controle criminal que ultrapassa as barreiras da legalidade, além de fragilizar a democracia pela ruptura do Estado de Direito, também pode ser qualificado como uma atuação corrupta, em especial se proporciona benefícios pessoais ou institucionais a quem o promove."

"Incluir a justiça criminal na missão de combate à corrupção implica reduzir ainda mais o deficiente controle que existe sobre a atuação do Ministério Público com potencial inclusive para aumentar os níveis de corrupção dentro do sistema de Justiça."

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"Tampouco há que apontar eficiência num controle que não opera de forma equânime, seja por violar o princípio da igualdade das democracias, seja por representar um fator de desequilíbrio na arena política, com risco de deslegitimação da política ou das pautas defendidas por aqueles que são seletivamente atingidos pelo controle criminal".

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