Caro leitor,
O presidente Jair Bolsonaro sempre enxergou um inimigo no seu encalço. Quando era deputado federal, em mais de uma ocasião recusou até mesmo copo d'água, com medo de ser envenenado, e recorreu à torneira para matar a sede. Agora que enfrenta um adversário de verdade, Bolsonaro está atônito. O “inimigo invisível” é global, mas tem poder de ferir seu governo de morte.
Panelaços em dois dias seguidos, com gritos de “Fora Bolsonaro”, e um pito de Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo, escancararam a fragilidade política do presidente. Pior: a decepção ocorre no meio dos discípulos mais fiéis. Nos bastidores, a ala ideológica do governo culpa a influência dos generais pelo derretimento da imagem de Bolsonaro.
Não bastassem os protestos em 22 capitais, o inquilino do Palácio do Planalto também foi derrotado, na noite desta quarta-feira, 18, ao convocar uma contraofensiva das janelas e varandas. Em 1992, no auge da crise política, o então presidente Fernando Collor pediu que o Brasil saísse às ruas de verde-amarelo. Foi surpreendido com pessoas vestidas de preto. E aquele luto impulsionou o impeachment.
No Planalto,auxiliares de Bolsonaro já admitem que ele cometeu um erro ao tratar ao avanço do coronavírus como “fantasia”, “histeria” e “uma gravidez”, que vai passar, “porque um dia vai nascer a criança”.
Monitoramentos de redes sociais indicam que o presidente perdeu apoio, na última semana, justamente porque demorou a admitir a gravidade da crise e não levou em conta sentimentos da população, como incerteza, tristeza e medo. Em contraponto, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ganhou prestígio.
Mandetta, porém, está na “frigideira” de Bolsonaro e, como mostrou o Estado, não é de hoje que vê seu trabalho ser esvaziado pelo Planalto. Nos últimos dias, o ministro da Saúde – que é filiado ao DEM – apareceu ao lado do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), para tratar das medidas de combate ao coronavírus.
O fato incomodou Bolsonaro porque Doria é um de seus maiores adversários políticos e sonha em ocupar sua cadeira, em 2022. Depois de passar dias minimizando a pandemia, no entanto, o presidente percebeu que governadores como Doria estavam aparecendo mais do que ele. E, em um ano eleitoral como este, as pessoas observam quem é competente para resolver crises e quem está mais interessado no populismo.
De máscara cirúrgica e ao lado de oito ministros com os rostos também protegidos, Bolsonaro adotou nova estratégia e tentou se aproximar do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.
No “salve-se quem puder” do coronavírus, porém, até mesmo aliados do presidente têm cada vez mais certeza de que o governo de plantão não precisa de inimigos. Quando não é o próprio presidente que dá um tiro no pé, a família entra em ação.
Agora, por exemplo, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho “zero três”, atirou na direção da China, maior parceiro comercial do Brasil. Presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, Eduardo culpou a “ditadura chinesa” pela disseminação do vírus. O embaixador Yang Wanming exigiu retratação. Em comunicado publicado no Twitter, a embaixada da China chegou a afirmar que, ao retornar de Miami, nos EUA, Eduardo havia contraído, infelizmente, um “vírus mental”.
Opresidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pediu desculpas à China e ao embaixador pelo que chamou de “palavras irrefletidas” de Eduardo.No fim do mês passado, o Ministério da Saúde já havia divulgado um vídeo cobrando respeito com os chineses. “Tem uma medida que não cabe: o preconceito, a rotulagem”, disse Mandetta.
Na mesma linha, o vice-presidente Hamilton Mourão afirmou nesta quinta-feira, 19, que a opinião de Eduardo não corresponde à visão do governo. “Não é motivo de estresse”, amenizou o vice.
Olavista, o chanceler Ernesto Araújo elevou o tom e escreveu que a reação do embaixador chinês foi “inaceitável”, “desproporcional” e “feriu a boa prática diplomática”.
Detalhe: Mourão havia submergido nove meses após ataques da ala ideológica do governo e desconfianças do próprio Bolsonaro, para quem ele se movimentava como uma espécie de presidente paralelo.
Depois de tantas batidas de cabeça, porém, o general voltou. Para bom entendedor...